Uma entrevista a Slavoj Zizek, por Vítor Belanciano, na Revista do Público.
Vale a pena ler até ao fim. Mesmo que se tenha opiniões diferentes. Faz pensar, em coisas importantes e sérias e não na forma ligeira como alguns programas, supostamente debates sérios, veiculam pomposamente umas "opiniões".
«No fim da conversa diz-nos que não gosta propriamente de viver entre
aeroportos, hotéis, seminários, palestras ou conferências — “odeio pessoas,
do que gosto mesmo é de passar o dia sozinho, sem grande coisa para fazer,
embora passe o tempo a trabalhar” —, mas é isso que o filósofo e teórico cultural esloveno Slavoj Zizek tem feito nos últimos anos.
Há 15 dias esteve no Porto, onde recebeu a medalha de honra da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto e proferiu a conferência A Liberdade
de Uma Escolha Forçada, com o espaço a revelar-se pequeno para a multidão
que fez fila para o ouvir. Nascido em Ljubljana em 1949, é um dos mais activos intelectuais públicos da actualidade, tendo publicado dezenas de livros — em Portugal, desde 2007, é possível ir encontrando as suas obras, que vão do pensamento político à análise da sociedade contemporânea.
Bem-humorado, sagaz e complexo, tem também inúmeros detractores que não lhe
perdoam a popularidade, a forma como cruza saberes, o lado provocatório.
Quando lhe recordamos isso, ri-se. “O que hei-de fazer? Por vezes tentam
desacreditar-me das mais diversas formas, mas passo à frente.”
É de esquerda, mas é um crítico da esquerda europeia que se contenta com “o capitalismo global neoliberal de rosto humano”, dizendo que vivemos numa ilusão democrática onde as escolhas, quando se trata de economia ou política, são extremamente condicionadas por um sistema capitalista em autodestruição. “Temos liberdade individual, mas a organização das nossas sociedades está cada
vez mais fora do nosso alcance”,reflecte.
Esta semana estreou-se em Portugal o segundo documentário em que é protagonista — O Guia de Ideologia do Depravado, realizado por Sophie Fiennes — e prepara já um terceiro, à volta de Deus. Diz que não viu nenhum deles — “fi-
co horrorizado ao ver os meus tiques”, afirma — embora aí se ocupe de uma das
suas paixões, o cinema, para mostrar que a ideologia faz parte da nossa experiência diária, sendo preciso perceber as suas inconsistências. “Agrada-me
aplicar teorias de alguma complexidade a tópicos vulgares, mas todos os elementos têm de participar numa lógica inerente comum”, justifica.
Tem um estilo de comunicar inigualável, sempre agitado, esfregando o nariz ininterruptamente — “os meus piores inimigos pensam que me drogo”, provoca,
“mal sabendo eles que nem fumo ou bebo, embora fique nervoso logo pela manhã”, diz-nos, antes de se despedir com uma gargalhada e uma máxima que utiliza nas conversas com jornalistas: “Dou-lhe total liberdade para manipular as minhas palavras.”
Está em Portugal num momento particular. Sabe certamente que o ex-primeiro-ministro José Sócrates foi detido.
Sim, até brinquei, ontem, na conferência, com o assunto, porque quando cheguei parecia que estava numa realidade paralela onde o Porto era Atenas, na antiga Grécia: Sócrates tinha sido detido e a Academia de Platão encerrava devido
às medidas de austeridade… [risos]. Que dizer? Se há corrupção, tem de ser averiguada. Infelizmente, não é novidade nos nossos países. Uma decisão desse género nunca é neutral, mas não tenho “histórico” para avaliar o que se passa.
Uma parte dos políticos das nossas democracias será corrupta, mas ainda não estamos tão mal como na China. Quando lá estive, constatei muitos exemplos de corrupção, mesmo entre ministros, embora os meus amigos chineses leiam isso mais como um sintoma — ou seja, o ponto não será tanto a corrupção, mas qual das facções tenta enfraquecer a facção rival.
De uma forma geral, quando situações de corrupção são expostas, tende-se a
personalizá-las, evocando a moral dos prevaricadores. Até que ponto não se
cria assim uma cortina que nos impede de desmontar as complexidades de
ordem sistémica, as teias de poder, o contexto de relações que permitem ou
abrem espaço a essa corrupção?
Concordo totalmente. Concentramo-nos na árvore, perdendo de vista a floresta. Quando a crise financeira rebentou em 2008, o ultraespeculador Bernie Madoff
foi preso por causa de uma megafraude financeira, mas não me agradou a focagem sobre ele. Claro que há banqueiros infractores. A questão é porque é que lhes é permitido que actuem daquela maneira. É mais fácil culpar esta ou aquela pessoa,
mas todos sabemos que prevaricadores como Madoff existiram sempre. Claro que
deve ser julgado, mas mais importante é perceber a complexidade sistémica para
a transformar, de contrário, estaremos sempre perante pessoas como ele. Quando
grandes bancos de investimento, do género Lehman Brothers, são tratados
continuadamente com impunidade e a atenção é colocada numa pessoa, é necessário interrogarmo-nos.
O caso de Bernie Madoff é até revelador das contradições do capitalismo. Sendo presidente de um fundo de investimento e responsabilizado por fraude financeira, era também um conhecido filantropo.
Exactamente. Por um lado roubava, por outro era filantropo. E isso devia fazer-nos pensar: como é que o capitalismo assimila cada vez mais a filantropia e a caridade, não apenas como idiossincrasia, mas como algo inerente ao próprio
sistema. Sabemos que Bill Gates é um competidor feroz e tem uma estratégia
extremamente agressiva, cobrando imenso pelos programas da Microsoft, mas ao mesmo tempo dissemina generosidade. É uma caridade ambígua — dá milhares
de computadores aos países subdesenvolvidos, mas ao mesmo tempo espera que
eles comprem os programas da Microsoft. Claro que é melhor que Bill Gates
gaste parte dos seus milhões no tratamento de doenças em África do que nada. O problema é que essa não é, globalmente, a solução. A desigualdade cresce mais
e os mais ricos tendem a manter a situação sob controlo dando um quinhão aos mais desfavorecidos, que acaba por ser uma forma de reproduzir a situação que
gerou essa brutal desigualdade.
A tentação é quase sempre responsabilizar este ou aquele político e promover pequenos reajustes, mas quem ousa proclamar que o sistema actual está esgotado é imediatamente desautorizado se não tiver uma alternativa no bolso.
Sim, a cilada consiste em criar a ideia de que não existem alternativas ao que temos hoje. Do ponto de vista tecnológico, tudo parece possível, viajar pelo espaço, clonar, fazer crescer órgãos, mas nos terrenos da sociedade e da
economia dizem-nos que quase tudo é impossível. Aumentar os impostos aos mais
ricos? Impossível. Mais dinheiro para a saúde? Nem pensar. E a maior parte da esquerda aceita esta disposição. Mas, com o capitalismo em crise permanente, só nos resta encontrar outro caminho. A esquerda moderada não deseja mais que o mesmo capitalismo da direita, mas num registo restaurado. Não creio que seja por aí. Culpar pessoas ou atitudes também não basta. É preciso ir mais longe porque os problemas são sistémicos. Hoje é até fácil ser moralista anticapitalista. Em qualquer jornal se pode ler que determinada companhia polui o ambiente ou
permite o trabalho infantil. Aponta-se o dedo a pessoas ou a empresas pouco responsáveis. A moral desfoca a discussão. Em 2008, o Vaticano declarou que não estávamos a assistir a uma crise do capitalismo, mas a uma crise moral.
Hoje sabemos, por exemplo, que o banco do Vaticano detinha contas da máfia. No interesse da moral, precisávamos de menos moralismo... [risos]. Nunca nos devemos esquecer da ambiguidade da moral. É uma situação que alguma direita
gosta de manobrar, atacando a democracia como sendo imoral, corrompida,
para assim legitimar lideranças musculadas.
Nas diferentes formas de acção colectiva dos últimos anos nascidas na rua (Occupy Wall Street, Indignados ou os protestos no Brasil), apesar das
características únicas de cada uma dessas situações, sentia-se que nesses
protestos as pessoas sabiam apenas o que não queriam. Existia mal-estar, mas
ninguém parecia saber o que fazer a partir daí.
É verdade. Não há respostas fáceis. Ninguém as tem. Muito menos aqueles que detêm o poder. Veja-se a Europa: cegos lideram cegos. As políticas de austeridade são uma espécie de superstição. Uma fuga para a frente de quem não
quer encarar uma situação complexa. A austeridade é apenas uma forma de evitar
ir à verdadeira raiz da crise. Dito isto, tenho reticências em adoptar uma atitude anti-Alemanha, como se fossem os maus da fita. São, até certo ponto. Mas é como se o sistema os puxasse para essa estrada. E quem é que tem um bom sistema automático e funcional para propor? A situação é tensa, também por causa desta
inércia da Europa. O movimento Occupy Wall Street teve o mérito de ser o primeiro que problematizou o sistema enquanto tal e era genuíno. Não era o protesto clássico de esquerda ou uma multidão a gritar contra a guerra ou o racismo. Em segundo lugar, existia uma consciência de que a democracia actual,
institucionalizada e multipartidária, já não chega para resolver os problemas.
De alguma forma ainda bem que não existiu esse desejo de traduzir rapidamente a energia do protesto numa série de propostas concretas. Vivemos num mundo que
passa o tempo a querer que actuemos. Às vezes, essa é uma forma perversa de impedir que pensemos. Temos de ser pacientes. Transformámos — com a reforma
de Bolonha — a educação superior numa máquina de resolução de problemas, formando especialistas para os resolver. Precisamos de algo mais radical: gente
que questione a forma de ver os problemas. A sua verdadeira resolução começa
aí.
Nas últimas semanas, em Portugal, tem-se falado muito do partido Podemos,
porque está à frente das intenções de voto em Espanha, e você tem
acompanhado de perto o Syriza na Grécia. Ambos podem alcançar o poder
nas próximas eleições nos seus países. Tem dito que é necessária uma nova
esquerda que atribua novos sentidos ao mal-estar de que falávamos. O que
projecta que poderá vir a acontecer?
Simpatizo com o Podemos, mas conheço melhor o Syriza. O Podemos elegeu
como slogan a palavra “dignidade”. É uma boa escolha, mas é preciso que
estejam conscientes das ambiguidades. Existe hoje uma grande luta pelo signifi-
cado dos termos. Acontece com a palavra “democracia”. Todos os políticos a evocam. Mas o que é que cada um quer dizer exactamente? A expressão “dignidade” tem esse problema também. É um bom ponto de partida, mas a questão é como se desenvolve esse conceito? Significa mais serviços sociais? Mais cuidados de saúde? Imaginando que alcançam o poder, o que farão exactamente no dia seguinte? O que significa dignidade quando se tem de lidar com a burocracia de Bruxelas? Até onde se pode ir? Essa é que é a verdadeira questão. Na Grécia, o Syriza está consciente da situação trágica que os rodeia.
Se vencerem, sozinhos ou em coligação, espera-os um contexto clientelar, muita
corrupção, 15% dos membros da polícia pertencentes ao partido de extrema-direita Aurora Dourada e têm o capital contra eles. Também estão proibidos
de implementar a tradicional política de esquerda, controlando o capital, porque
na União Europeia terão de permitir a circulação do mesmo. É curioso porque
passam o tempo a tentar convencer o Ocidente de que são razoáveis, quando me
parecem ser a única esperança da Grécia. A regressão social naquele país é inacreditável. Nos campos, voltou-se a um tempo ancestral, com famílias enormes, onde os filhos não abandonam os pais, por razões económicas.
Se algum desses partidos alcançar o poder, confrontar-se-á, inevitavelmente,
com a gestão das elevadas expectativas. Funcionarão como laboratório. Todos
os olhos se focarão neles. Barack Obama sofreu do mesmo.
Curioso referir Obama. De alguma forma ele antecipou o Podemos, proclamando “Yes, we can”. Mas tem razão. Os esquerdistas que o atacam como se fosse um traidor esperavam o quê? Que introduzisse o socialismo nos Estados Unidos?
Ele, modestamente, aqui e ali, tentou-o, com o plano de saúde, por exemplo. Mas teve de enfrentar a oposição feroz da direita. Obama é o caso sintomático de como os políticos tradicionais estão manietados. Têm um espaço de actuação limitado.
Mesmo noutros contextos onde a esquerda mais radical chegou ao poder, como na África do Sul, a esperança foi dando lugar a alguma desilusão. As coisas melhoraram, é certo, mas muitos problemas mantêm-se. Ninguém tem uma fórmula. O que fazer? Certamente que a solução não é regressar a nenhuma velha
forma de autoritarismo. Não creio que o presente sistema perdure, nesta deriva
em que se encontra. A solução não deverá ser regressar a uma forma qualquer
idealizada de passado, mas não tenho uma solução fácil. Sou um esquerdista
pessimista. Posso lançar perguntas, mostrar o que não funciona, perfilar problemas, mas não tenho respostas de bolso.
Existe também o perigo de esses partidos chegarem ao poder e falharem, sendo usados como exemplo para não se repetirem experiências idênticas. Aí
serão acusados — como os poderes estabelecidos já fazem, aliás — de ser
sonhadores ou populistas.
Sim, mas não será a ideia de crescimento económico infinito, na qual baseámos a nossa organização social, a maior das fantasias? Os partidos no poder quando usam esse tipo de argumentações, provocando medo nas pessoas, deviam meter a mão na consciência, porque eles, sim, são um enorme falhanço. Os verdadeiros
sonhadores são os que pensam que as coisas podem continuar infinitamente como
estão, com mudanças superficiais. Mas é claro que existem perigos. Os meus
amigos da Alemanha dizem-me que as forças financeiras mais conservadoras da Europa desejam que o Syriza chegue ao poder. Porquê? Para promoverem um completo fiasco. Qualquer coisa que sirva de exemplo, para mostrarem que não estão para brincadeiras. Mas qual a solução? É preciso arriscar. Napoleão dizia:
ao ataque e depois se verá… [risos]. Não podemos ser estúpidos ou pueris, mas temos de ir tentando, passo a passo. Estou saturado da esquerda marginal que não só sabe que nunca alcançará o poder, como secretamente nem sequer o deseja alcançar. A tragédia da esquerda nos últimos 50 anos é que falhou e escreveu
excelentes explicações das razões que levaram a esse falhanço… [risos]. Os
esquerdistas são os melhores teóricos do seu próprio falhanço. O que admiro no Syriza ou no Podemos é a tarefa quase heróica de quererem seriamente alcançar
o poder. Veremos o que acontece. Temos de começar de alguma forma, em algum lugar. Temos de aprender com os erros. O que também me agrada nesta nova
esquerda é que não se vislumbra qualquer entação autoritária. E isso é bom.
Por outro lado, esta ideia de que o capitalismo global domina tudo é um mito. Há boas notícias — ele não é consistente, é contraditório, contem divisões internas e com a estratégia política adequada é possível ir desenhando novas soluções. Olhe-se para a governação de Lula da Silva no Brasil. Ele percebeu que o capitalismo não é esse sistema hegemónico. Mesmo com os problemas de corrupção, os meus amigos mais radicais de esquerda admitem que mudou a
situação dos mais necessitados.
Tem afirmado que os poderes políticos locais não têm controlo sobre as
dinâmicas globais. Ou seja, o problema hoje é que não existem mecanismos
reguladores globais, é isso?
É. Existem demasiados pontos críticos: a ecologia, as formas de exclusão social,
a propriedade intelectual, os fluxos financeiros ou a biogenética. São problemas
globais e a questão é como podem ser controlados. Os mecanismos democráticos são hoje insuficientes para enfrentar o tipo de conflitos que se posicionam no
horizonte. A biogenética, por exemplo. Quem a controlará? Por uma estranha coincidência, estive presente numa mesa-redonda onde estavam grandesfiguras
da Academia Chinesa das Ciências do Instituto de Biogenética. Às tantas, deram-me um programa com os seus planos. Fiquei horrorizado. A ideia é regular, não só a saúde física, como a mental. Não os censuro. Toda a gente está a fazer o mesmo.
Os ecos que chegam dos EUA ou da Rússia não são muito diferentes. Já não se trata de tentar uma “lavagem cerebral” através de propaganda. É algo mais literal. Trata-se de tornar as pessoas mais apáticas ou mais agressivas, conforme os interesses em jogo. Quem controlará tudo isto? E a propriedade intelectual? Como reorganizar a economia legal na Internet? Precisamos de medidas globais. Quem as produzirá? Não vislumbro uma solução fácil. O problema hoje não é a democracia local, são as novas formas de organização global. Como tratar a ecologia? Como travar os desvios financeiros? Através de iniciativas locais?
Impossível. Necessitamos de iniciativas globais de grande envergadura.
Alguns países, como a China ou a Coreia do Sul, estão a viver um período
de grande crescimento económico. Parece-lhe possível que o “capitalismo
autoritário asiático”, como lhe chama, se venha a tornar no modelo a seguir?
Pelo menos, hoje, personificam uma das tendências. Vivem-se tempos loucos. Estive recentemente em Seul, na Coreia do Sul, e fazia um discurso sobre a crise
global quando, para minha surpresa, se começaram a rir. “Qual crise?”, perguntavam-me. E tinham razão. Eles estão a estourar, bem como a China ou Singapura e até a Indonésia. Mesmo alguns países da América Latina ou os EUA
também se estão a safar. Quem parece estar em crise é a Europa Ocidental. Na Coreia, diziam-me: se olharmos para o globo, constatamos que a maior parte dos países está melhor do que nunca. Olhe-se para Angola. Como é evidente, estou consciente dos horrores de Angola, mas pondo as coisas de forma irónica é como se estivessem a colonizar Portugal, comprando aqui muitas empresas. Os países que têm sucesso hoje praticam um capitalismo violento, mas com um papel
muito importante do Estado. Ou seja, vivemos num tempo em que aquilo a que chamamos, erradamente, “valores capitalistas asiáticos” (que não é outra coisa senão uma forma de capitalismo autoritário) emerge mais eficiente nos termos capitalistas do que o capitalismo europeu liberal e democrático. Essa é a ironia da China. Os comunistas são mais eficazes para o desenvolvimento do capitalismo. O capitalismo asiático é mais dinâmico e produtivo que o nosso. E quanto menos funcionar democraticamente melhor. Estamos a assistir à instauração de uma nova ordem que vai alastrando. Pelo menos pode dizer-se que existe algo no capitalismo contemporâneo que o está a conduzir na direcção da
diluição da democracia. A Rússia de Putin é outro exemplo, misto de modo de produção capitalista e Estado autoritário. E nesse contexto todo o legado europeu
em termos de igualdade, direitos humanos, feminismo ou solidariedade social
é descartado.
Nesse cenário, os mecanismos democráticos vão-se tornando cada vez mais irrelevantes, podendo contribuir para sociedades cada vez mais desiguais?
Sim. O capitalismo está a cavar a sua própria sepultura. Não creio que vá suceder uma catástrofe imediata, mas a prazo o que poderá acontecer é o desaparecimento gradual da democracia. Não falo de um golpe fascista. Odeio os pseudo-esquerdistas que, mal vislumbram uma tentação autoritária, começam a gritar que o fascismo está de regresso, que é uma forma de não nos confrontarmos com uma análise mais real. É a própria estrutura do sistema que não se reproduz de forma autenticamente democrática. Vivemos numa espécie de ilusão democrática.
As decisões-chave, em termos estratégicos e financeiros, são nebulosas. Não existe debate. É tudo feito em segredo. É esta a situação perigosa da qual nos aproximamos. Apesar de todo o discurso liberal que nos rodeia, vivemos numa das sociedades mais controladas de todos os tempos. Por um lado, temos a liberdade individual — nos costumes, no sexo, no hedonismo, podemos viajar (se
tivermos dinheiro) e por aí fora. Enfim, temos um leque alargado de escolhas. Mas ao mesmo tempo temos uma estrutura global que não é transparente e que parece ser inamovível e isso é preocupante. Continuo a acreditar na Europa — apesar de
sentir que está em perigo, dividida entre os tecnocratas e os nacionalistas anti-imigrantes —, mas ela é a grande perdedora nesta luta entre capital global e democracia global. As ideias europeias de igualdade, democracia, liberdade e
direitos humanos são reflexo de uma certa visão de uma sociedade justa e livre.
Se a Europa se desvanece, se o seu papel se perde, o que a substituirá?
“Por vezes, os milagres acontecem”, para o parafrasear.
Sim... [risos]. Sou totalmente pró-Europa, apesar de estar na moda ser anti-europeu. Mas há que tentar a mudança a sério. Sou um esquerdista pragmático que
aceita o jogo. Não sou um esquerdista louco que espera pela grande revolução.
Se esperamos pelo momento certo para uma revolução, ela nunca acontecerá por
definição. É preciso adoptar uma atitude utópica realista. Uma série de coisas
exigem mudanças radicais, mas não se pode desejar que aconteçam de forma directa. Começa-se com algumas mudanças, e depois vai-se indo um pouco mais
longe, e mais longe ainda e assim sucessivamente. Por outro lado, sim, os milagres acontecem. Quem esperava a Primavera Árabe? Não sejamos cínicos.
Existe a tentação de dizer que está tudo na mesma. Não é verdade. Existem poderes militares e por aí fora, mas a sociedade civil acordou. Existem sindicatos, organizações feministas ou estudantis e isso é uma força considerável.
Mesmo na Turquia. É verdade que Erdogan [Presidente turco] está cada vez mais
autoritário, mas ao menos agora sabemos quem ele é verdadeiramente. E isso é bom. Muitas vezes, as pessoas dizem desejar a mudança, mas realmente não a querem, receiam-na. Querem mudar, mas em segurança. Não sei se é possível. Por vezes, temos de saltar para o desconhecido. Querem que alguém lhes diga o que fazer, mas mantendo a aparência de que são elas a decidir... [risos]. É difícil ser realmente livre, porque se tem de assumir completamente as responsabilidades
pelas decisões. Antes da Revolução de Outubro, Trotsky encontrou-se com Lenine, e este terá dito: “Estou muito preocupado, o que nos acontecerá se falharmos?”, ao que Trotsky terá respondido: “Pois eu estou muito mais preocupado com o que nos acontecerá se vencermos!”… [risos]. E Trotsky tinha razão. A maior parte das vezes estamos preparados para o falhanço, arranjamos
justificações e tal. O pior é quando se ganha. Aí não existem desculpas para não se fazer o que realmente se deseja fazer.»