19 abril, 2010

A insustentável urgência da ética

No Público de ontem, Domingo, um bom texto para explicar a necessidade da ética na economia, mas também uma boa explicação para aquelas pessoas que nunca percebem para que serve a Filosofia.


A insustentável urgência da ética


Por Filipe Almeida*

Há cerca de 200 anos, quando a economia começou a estruturar-se como ciência dedicada ao estudo sistemático das trocas e dos mercados, começou também a questionar-se a necessidade urgente da sua emancipação em relação às doutrinas morais que estudavam o bem e o mal, o justo e o injusto, impondo limites à conduta e à consciência. A jovem ciência emergente da economia, deslumbrada e cheia de vitalidade positiva, não poderia ficar prisioneira dos bons costumes, sob pena de sucumbir à preguiça da tradição ou do preconceito. Queria compreender o mundo tal como ele é, sem impor-lhe uma visão do que ele deveria ser. E, assim, deu-se o divórcio da ética e da economia. Foi um divórcio amigável, já que os economistas não negavam as boas intenções da ética, embora a sua vocação normativa a tornasse aparentemente incompatível com os princípios gerais da concorrência e com as recém-descobertas leis do mercado.

Do fim daquele tempo antigo é Adam Smith (1723-1790), considerado por muitos como o "pai" da economia moderna, devendo a fama ao seu livro de 1776 sobre a natureza e as causas da Riqueza das Nações. E, apesar disso, Adam Smith foi professor de Filosofia Moral na Universidade de Glasgow. Dezoito anos antes da sua obra económica fundamental, havia publicado a Teoria dos Sentimentos Morais, onde reconhecia a genuína capacidade do ser humano para alcançar real satisfação com o bem alheio. Fez sucessivas revisões deste livro até à sua morte e, segundo consta, considerava-o superior a todos os outros que escrevera. Depois de Adam Smith, aos poucos a economia foi dispensando a ética como fonte de inspiração ou de restrição das suas análises, dos seus modelos ou das suas propostas. E raras vezes voltou a coincidir no mesmo autor o interesse simultâneo pela economia, pela moral e pela política.•

A economia tornou-se amoral e a moral tornou-se alheia à evolução dos mercados. Desde então, o mundo terá evoluído relativamente bem sem a influência dominante da Filosofia, dirão alguns, com prodigiosos e indiscutíveis progressos económicos colectivos.

A lei do mercado e a lei dos Estados pareciam bastar, sem a subjectividade dos imperativos morais, sempre discutíveis e por isso incapazes de gerar boas soluções duradouras. A economia havia assegurado os progressos. A reflexão filosófica tornara-se um exercício aparentemente ultrapassado e frequentemente inútil. E, no entanto, devemos à filosofia de Jeremy Bentham (1748-1832) o ensino e a universidade acessíveis a todas as classes com a fundação da Universidade de Londres, contrariando o elitismo de Oxford e de Cambridge. Ao utilitarismo universalista de John Stuart Mill (1806-1873), o sufrágio universal, a igualdade de direitos entre homens e mulheres, a abolição da escravatura e os princípios da tributação como instrumento da justiça distributiva e do Estado-providência. Ao pensamento de John Locke (1632-1704), a concepção de Estados laicos, com Governos independentes das Igrejas, com a política independente da religião. A Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o ideal democrático da soberania do povo. A Jean-Paul Sartre (1905-1980), a crítica fundamental ao anti-semitismo. À filosofia de Immanuel Kant (1724-1804), os imperativos racionais que dariam origem à formulação dos códigos deontológicos profissionais.

Os progressos humanos, na verdade, nunca foram alheios à filosofia e à ética. A economia, sem ética, dispensa a discussão dos fins que se propõe, tornando-se perigosamente cega. A prática empresarial, sem a responsabilização moral dos seus agentes, dispensa o questionamento dos meios que usa para atingir os fins, tornando-se inaceitavelmente indiferente aos impactos sociais e ambientais que provoca. Os perigos deste divórcio parecem ser, hoje, evidentes. E já há bons sinais do inevitável reencontro da economia com a ética e de ambas com a política. Mas nunca é de mais insistir na urgência desse reencontro, sob pena da mais leve distracção tornar o mundo política e economicamente insustentável.
*Docente da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

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