30 agosto, 2012

Atenção ao desacordo do dito AO!

Muito importante esta contribuição. Além de publicar aqui, do Público de 29 de Agosto de 2012, já imprimi, para afixar no meu local de trabalho e oferecer uma cópia a quem quiser.






"O Acordo Ortográfico (AO) não serve o fim a que se destina - a unificação ortográfica da língua portuguesa.

O prazo de transição terminará somente em 17 de Setembro de 2016.

1. Vícios formais e orgânicos.

O n.º 1 da Resolução do Conselho de Ministros (CM) n.º 8/2011 (que determinou a antecipação parcial do prazo de transição, mandando aplicar o Acordo Ortográfico à administração pública directa, indirecta e autónoma) é organicamente inconstitucional, por violação do artigo 165.º, n. 1, alínea b), da Constituição, pois regulamenta, a título principal, direitos, liberdades e garantias.

A mesma norma padece de inconstitucionalidade formal a duplo título: por violação da reserva de lei parlamentar (art. 165.º, n. 1, al. b)) e por carência da forma de decreto regulamentar, constitucionalmente exigida para os regulamentos independentes (art. 112.º, n. 6).

A Resolução n.º 8/2011 não poderia ser aplicada a órgãos exercendo outras funções jurídicas do Estado diversas da administrativa; havendo, pois, inconstitucionalidade orgânica e material, por usurpação de poderes, e também formal, da norma do n.º 2 da Resolução do CM; acarretando de inexistência jurídica.

2. O AO viola aspectos nevrálgicos da língua portuguesa, enquanto pertença ao património cultural.

As "facultatividades" representam a destruição do conceito de ortografia.

Existe a violação do dever estatal de defesa do património cultural (art. 78.º, n.º 2, al. c)) e do direito ao património cultural.

Há uma tentativa de usurpação do papel da lei positiva em relação ao costume e à tradição linguística existente do português europeu.

Detecta-se também inconstitucionalidade material, devido à violação da garantia institucional da neutralidade ideológica e consequente proibição do dirigismo estatal da cultura (art. 43.º, n.º 2), uma vez que o AO é puramente político, não sendo baseado na ciência linguística.

O AO consiste num autêntico plano totalitário de unificação aparente, expressando um fenómeno de "democracia totalitária" por parte do Estado "abafante" relativamente à sociedade civil.

3. Uma das consequências de a Constituição instrumental ser rígida é a impossibilidade de proceder a alterações através de textos com valor infraconstitucional (legislativos ou outros). Uma correcção ortográfica da Constituição, segundo o AO, é inadmissível sob o ponto de vista da hierarquia de fontes. As disposições da Constituição instrumental são intocáveis; só podendo ser alteradas licitamente mediante o exercício do poder de revisão constitucional.

O art. 2.º, n.º 2, da Resolução da AR n.º 35/2008, que determina que quaisquer reedições terão de ser feitas segundo o AO, é orgânica e materialmente inconstitucional, pois se refere, também, à Constituição instrumental.

3.1. Existe um dever de todos os particulares desobedecerem às normas mais aberrantes do AO, desfiguradoras do núcleo identitário das normas ortográficas costumeiras de língua portuguesa.

4. Restantes inconstitucionalidades materiais

4.1. Quanto a outras inconstitucionalidades materiais, temos, v. g., a violação da "autorização constitucional expressa"; restrições, não credenciadas pela Constituição, ao direito à língua e à liberdade de expressão; violação do princípio da identidade nacional, do princípio da igualdade, do direito ao desenvolvimento da personalidade, do dever de o Estado informar os cidadãos sobre os assuntos públicos (art. 48.º, n. 2); da regra da proibição de censura (art. 37.º, n. 2), da liberdade de criação artística e cultural (art. 42.º, n. 1), da proibição de dirigismo político na educação (art. 43.º, n. 2), da liberdade de aprender e de ensinar (art. 43.º, n. 1), das vertentes científica, pedagógica e administrativa da autonomia universitária (cfr. art. 76.º, n. 2); violação do direito ao ensino e à cultura, da liberdade de imprensa, do direito à informação do consumidor.

4.2. O Vocabulário de Língua Portuguesa e o conversor Lince, previstos pela Resolução do CM n.º 8/2011, padecem de inconstitucionalidade material, por violação do art. 112.º, n.º 5, 2.ª parte; de inconstitucionalidade orgânica, por regulamentar direitos liberdades e garantias (cfr. art. 165.º, n.º 1, al. b));

Registam-se várias ilegalidades sui generis do Lince e dos correctores ortográficos, por violação das próprias normas constantes do AO.

5. Consequências das inconstitucionalidades mencionadas.

A AR deve aprovar uma resolução que revogue a Resolução n.º 35/2008, autodesvinculando o Estado português.

Devido às inconstitucionalidades mencionadas e ao consequente desvalor da nulidade, existe o poder-dever de desaplicar as normas constantes do AO e da Resolução n.º 8/2011 do CM, por parte de todas as entidades públicas: legislador, tribunais, bem como órgãos e funcionários da administração pública.

Não existe dever de obediência por parte dos funcionários públicos, pois a ordem de respeitar o AO (ou o Lince) padece de inconstitucionalidade, por violação de direitos, liberdades e garantias, o que origina o desvalor da nulidade daquele acto. Deste modo, o não acatamento da ordem é insusceptível de acarretar responsabilidade disciplinar.

Os particulares gozam do direito de resistência (art. 21.º), do direito de objecção de consciência e do direito genérico de desobediência a normas inconstitucionais (e, em nosso entender, um dever de desobediência em relação às normas mais aberrantes do AO, que desfiguram a língua portuguesa)."

Por Ivo Miguel Barroso 
Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

28 agosto, 2012

O exercício da cidadania numa democracia...


Não me sinto com direito a mudar o título da crónica - Só temos a múmia? -
de José Vítor Malheiros, publicada hoje no jornal  Público. Mas não me parece que o título chame a atenção dos leitores para aquilo que realmente é: umas boas perguntas, que nada têm de retóricas, depois de exemplificar com bastos exemplos, o que é exercer o direito de cidadania. Acho que não deixa ninguém indiferente!



"O exercício da cidadania numa democracia não se esgota na prática do voto durante as eleições - ainda que seja a isso que se limita a prática democrática da maioria dos cidadãos, para não falar do número, crescente, daqueles que se abstêm até desse gesto mínimo.

Espera-se de um cidadão responsável que, na medida das suas possibilidades e interesses, aja politicamente, que participe nos debates políticos onde estão em causa os princípios que moldam a vida pública e as normas da vida em sociedade, que tome posição, que defenda os seus pontos de vista e os seus interesses usando os meios à sua disposição, da discussão pública no café ou no Facebook ao uso dos meios de comunicação clássicos e de outros fóruns.

Espera-se de um cidadão responsável que interpele os poderes, que use os instrumentos legais para o fazer, da participação em reuniões públicas da sua autarquia ao lançamento de petições e abaixo-assinados, que promova iniciativas legislativas cidadãs e envie projectos de lei ao Parlamento. Que participe nas organizações profissionais e sindicais que lhe dizem respeito, que lute por condições que garantam maior equidade, justiça e bem-estar para si, para os seus camaradas de trabalho e para a sociedade em geral. Que se envolva na actividade partidária, que participe em movimentos de cidadãos, que se envolva em organizações de defesa dos direitos humanos, de defesa do ambiente, de promoção do património cultural, de solidariedade social, que faça trabalho voluntário para causas humanitárias. Que se envolva nas organizações que visam melhorar as condições de vida do seu bairro, da sua cidade, da sua escola ou do seu emprego. Que denuncie os crimes de que tem conhecimento ou suspeita, que não feche os olhos à corrupção.

Espera-se de um cidadão responsável que reclame e que se indigne, que proteste e que se manifeste no espaço público em defesa dos direitos de todos, que promova concentrações, que organize manifestações, que lance palavras de ordem, que mobilize os seus concidadãos para as causas que lhe são mais caras.

Espera-se de um cidadão responsável numa democracia que não se cale e não se acomode, porque é esta inquietação e este envolvimento, são estas palavras e estes gestos, são estes sentimentos de dever e de responsabilidade para connosco, para com os outros e para com os nossos filhos que constituem o sangue da democracia - e não os rituais cada vez mais desprovidos de sentido das eleições, que nada ou quase nada mudam, onde apenas se escolhem nomes de entre opções pré-seleccionadas por umas dezenas de apparatchiki desconhecidos e de idoneidade duvidosa, onde todos os compromissos são jurados mas nenhum é cumprido, onde nenhuma responsabilização individual é possível, onde as opções possíveis estão limitadas a um oligopólio de partidos e onde o poder, faça-se o que se fizer, nunca foge a um cartel que tem como credo o servilismo absoluto ao poder corrupto e nunca escrutinado da finança.

Estes cidadãos responsáveis e empenhados são essenciais à democracia porque uma democracia que só se anima durante um dia de quatro em quatro anos não é uma democracia, mas apenas a múmia seca de uma democracia. Só que estas acções, esta agitação democrática, só fazem sentido se ela estiver de facto entretecida com a democracia das organizações, dos partidos, da política, do poder, do Estado. Esta vida democrática só faz sentido e só a declaramos como vital porque pressupomos que, nas organizações da sociedade, nos poderes e no Estado, alguém a ouve e que ela alimenta a acção política. E a nossa natural bondade gosta de pensar que esse alguém que ouve o povo é um poder benigno ou pelo menos que tenta ser justo ou, no mínimo, prudente. Gostamos de pensar que entre esta sociedade civil (para usar a fórmula consagrada) e um Estado democrático existe diálogo e que todas as manifestações dos cidadãos são de facto ouvidas, levadas em conta, pesadas. E que, em caso de grande dissidência, existe sempre a Justiça para arbitrar os conflitos.

Mas... e quando isso não acontece? E quando do lado do poder temos governantes sem escrúpulos e que apenas conquistaram o poder mentindo? E quando se fazem surdos a tudo porque a única coisa que querem é construir uma sociedade de senhores e de escravos invocando a legitimidade do seu mandato para governar? E quando tudo o que pretendem é espoliar o Estado das suas riquezas para as entregarem aos donos dos negócios onde eles já asseguraram o seu emprego futuro? E quando os tribunais aceitam suspender a lei para se submeterem aos ditames deste Governo? E quando as regras do jogo limitam os cidadãos, mas os governantes podem fazer batota? E quando todos os dados estão viciados? E quando todas as formas de intervenção democrática que não sejam a múmia estão bloqueadas aos cidadãos?"

10 agosto, 2012

Banksters

Uma crónica de Domingos Ferreira, no Público de 3 de Agosto de 2012. Pode ter passado despercebida a alguém. Quanto melhor informados melhor. Boa leitura!



"Esperem... Estou a sonhar ou todas as semanas surgem novas notícias sobre novos escândalos no sistema financeiro? Não! Não é minha imaginação. Depois dos escândalos dos empréstimos dos subprime, das fraudulentas taxas de juros, das apostas de alto risco no mercado de derivados e da venda de produtos tóxicos aos clientes, pensar-se-ia que mais nada poderia acontecer. Mas não! A Peregrine Financial Group é um broker de commodities e situa-se em Cedar Falls, no Iowa, EUA. Esta empresa geria uma carteira de investimento de cerca de 200 mil milhões de dólares provenientes de depósitos dos seus clientes. Todavia, em resultado da tentativa de suicídio do endividadíssimo Russell Wasendorf, CEO da Peregrine, a fraude foi descoberta. Wasendorf deixou uma carta escrita descrevendo todo o esquema fraudulento. Verificou-se que dos 200 mil milhões de dólares dos depósitos restavam apenas cinco mil milhões de dólares.

Este é um caso em tudo semelhante a um outro, o da MF Global Holdings Ltd. Este broker operava no mercado de dívida pública europeia e entrou em colapso em Outubro último, em resultado também de um desfalque de 1,6 mil milhões de dólares. Mas há mais! Quem alguma vez adivinharia que o HSBC, prestigiado banco inglês, estaria envolvido na lavagem de dinheiro proveniente do narcotráfico, "diamantes de sangue", venda de armas e ligações ao terrorismo internacional? Em resultado deste escândalo, a Subcomissão Permanente de Investigações do Senado Americano promoveu uma investigação de que resultou um relatório de cerca de 330 páginas onde são acusados dezenas de banqueiros e executivos. Apesar de advertida, esta instituição continuou o business as usual.

Há mais, ainda: de acordo com o New York Times, o Goldman Sachs enriqueceu o seu longo e duvidoso curriculum. O escândalo rebentou quando divulgaram que este banco tinha efectuado investimentos numa start-up cujo core business é, imaginem, pornografia infantil. Isto para não falar no mais recente escândalo da venda de uma empresa americana de high-tech, a Dragon Systems Inc., à empresa belga. Neste negócio, o Goldman Sachs figurava não só como adviser, mas também como representante da empresa adquirente. Todavia, até ao momento os fundadores da Dragon Systems, Jim Baker e Daniel Baker, ainda não viram a cor do dinheiro, apesar de Lernout & Hauspie terem provado que efectuaram o depósito de pagamento no Goldman Sachs. A história ainda não acaba aqui. A Capital One, a gigante dos cartões de crédito, foi obrigada a reembolsar os seus clientes num total de 210 milhões de dólares. A Capital One efectuava débitos nos cartões de crédito dos seus clientes de compras de produtos (à própria Capital One) que estes nunca haviam autorizado. E, por fim, a cereja em cima do bolo: a Commodity Futures Trading Commission denunciou a mãe de todos os escândalos - a Liborgate. O gigante financeiro Barclays admitiu ter manipulado em proveito próprio, todavia, com forte prejuízo para todos nós, as taxas de juros que servem de referência a todos os depósitos e empréstimos, como cartões de crédito, juros do crédito à habitação e automóvel, créditos pessoais, etc. Calcula-se que apenas num dia a Libor sirva de referência a cerca de 800 biliões de dólares. Desta maneira, o Barclays ganhou "rios de dinheiro". Mas ninguém pense que este banco está sozinho. É cada vez mais claro que alguns dos maiores bancos e traders internacionais estão também envolvidos. Até mesmo Robert Diamond Jr., CEO do Barclays que perdeu o seu emprego após a denúncia do escândalo, afirmou: "Fiquei doente com o que li nos emails dos meus traders". De facto, o clube está corrupto e será caso para perguntar: onde pára a polícia? Isto é, as autoridades de regulação. Porém, estas não funcionam, pois, para além de terem visto os seus orçamentos drasticamente reduzidos pelo Congresso americano, inviabilizando, assim, a supervisão do sistema, estas estão infiltradas pelos próprios banksters. Os serviços financeiros são cruciais para o desenvolvimento económico, por isso, todos, famílias e empresas, necessitam de um sistema transparente e honesto. É uma perigosa fantasia pensar que Wall Street se pode auto-regular como afirma Mitt Romney."

04 agosto, 2012

A austeridade funciona?

Um texto do meu amigo Manuel Baptista.
Aceitam-se críticas.


A austeridade, que nos foi vendida como a receita amarga, mas inevitável, para saída da crise não funciona de todo. 
Muitas pessoas - e não apenas «radicais de esquerda» - tinham avisado desde o princípio que este tipo de tratamento era susceptível de matar o paciente. Mas os donos do verdadeiro poder, a grande finança portuguesa e internacional, não queria ouvir nada. Só aceitavam que os partidos e governos, submissos, aplicassem a receita neoliberal, com todos os pós de hipocrisia e de conversa fiada, em que os políticos são exímios. O bom povo lá foi votando neles, mais uma vez enganado, confiante de que eram «estas raposas que iam pôr ordem no galinheiro». 
Agora, temos o nosso país e todos os outros, que enveredaram pelo mesmo caminho na eurozona, metidos num colete de forças. As medidas de austeridade apenas anunciam mais do mesmo e não se vê qualquer luz ao fundo do túnel. Esta luz, que tantos procuram tão ansiosamente, apenas se poderá acender quando as pessoas estiverem por fim conscientes de que têm de tomar nas suas próprias mãos a resolução dos seus problemas. Isso implica varrerem os políticos e seus acólitos da média ao serviço do grande capital, dos economistas, que fazem o seu show quotidiano de submissão à mão que lhes dá de comer!
 
Há uma interpretação - silenciada na média corporativa - sobre este rumo da economia e finanças globais: é a de que este caminho agora trilhado tem servido propositadamente para o recuo dos trabalhadores e dos povos, sujeitando-os ainda mais à agenda neoliberal, ao poderio sem limites da finança mundial. Pois assim - conforme aos desejos da banca, finança e grandes corporações -  estão reunidas as condições para a desregulação do mercado do trabalho, os cortes cegos no «Estado Social», de destruição das fracas forças que se opõem ao capitalismo triunfante. O resultado desta ofensiva é um grau de sujeição nunca antes visto nos tempos modernos, permitindo a ditadura total dos muito ricos, escondidos atrás da figura imaterial dos «mercados».
A receita falhou, porque estava destinada a falhar! Os técnicos do FMI, da UE e do BCE, que compõe a «troika» e os economistas e «analistas» que os apoiaram, não eram incompetentes ou ingénuos! Pelo contrário, eram plenamente conscientes do que faziam, sabendo que a verdade nua e crua seria sempre totalmente inaceitável pelos povos. Assim, numa operação cosmética de grande aparato, fizeram crer que «era inevitável», que não havia senão este caminho ou então... um horror... mas qual horror? O regresso às moedas nacionais seria uma mudança dolorosa, sem dúvida, mas que traria uma dinâmica de correcção, como a que foi trazida quando o Peso argentino descolou da paridade com o Dólar, aquando da interrupção de pagamento da dívida da Argentina. Hoje, onze anos depois, a Argentina pagou tudo o que devia e regressou aos mercados. Pode-se considerar uma potência em muito melhor estado, em termos relativos, do que os EUA e a UE. Mas é isto que não querem que o povo saiba, por isso nunca se discute a Argentina, nem - tão pouco - a Islândia. 

Há uma cortina de silêncio destinada a fazer crer que «não existe outra saída», senão uma continuidade na receita. Só que esta receita falhou desde o primeiro instante, de forma obstinada e sem dar sinais de qualquer inversão de tendência. Contrariamente às mentiras dos políticos do «arco do poder», todos os sinais são no sentido do agravamento do estado da economia em Portugal e em todos os países sujeitos a estes planos de «salvamento».

Como dizia Passos Coelho (primeiro ministro [da troika, colocado no posto de supervisão] de Portugal) «o desemprego pode ser visto como uma oportunidade». Efectivamente, é uma oportunidade para os muito poderosos: graças ao desemprego, eles poderão esmagar os que não têm senão a sua força de trabalho, pois se sujeitarão a tudo e não terão coragem para reivindicar qualquer legítimo direito, constitucionalmente «garantido», face à ameaça permanente sobre o seu ganha-pão. Assim, os muito poderosos criaram as bases para uma exploração muito mais alargada da força de trabalho e, logo, um maior lucro.

Eu não pretendo ditar um caminho, mas sim propor um método: as pessoas que discutam com as outras, sejam da sua família, sejam amigos e colegas de trabalho, quais os meios para contrariar esta guerra contra os pobres. Como em qualquer guerra, a primeira baixa é a verdade, por isso teremos de insistir nas verdades e desmascarar as mentiras dos nossos inimigos. 

Mas, por cima e além de enunciar de verdades, temos de encontrar meios próprios para fazer face à espoliação do que é nosso, quer sejam salários, pensões, ou os meios de que o Estado está obrigado a fornecer à sociedade: podemos construir associações de apoio mútuo (incluindo cooperativas e sindicatos independentes), sem interferência do estado sob qualquer forma - as pessoas têm de passar a confiar umas nas outras, mais do que no «Estado», pelo menos enquanto este for apenas um instrumento nas mãos dos poderosos. As pessoas podem muito mais do que pensam; por isso mesmo é que se tornou imperiosa a existência de uma tão grande manipulação; por isso é que existe um exército de manipuladores, muito bem pago, que permite manter a chamada «coesão social» (outro nome para «resignação» e «alheamento social»).

Quanto mais cedo Portugal sair do colete de forças em que está metido, melhor: denunciando o «acordo de resgate», que não mais é do que uma imposição violenta da agenda neoliberal ou seja, um programa de asfixia da economia real do país, em nome de um mítico «equilíbrio». «Equilíbrio» esse que nem o país mais forte da UE (a Alemanha) possui. A oportunidade para isso acontecer é agora, pois a Grécia irá, em breve, reverter ao Dracma e suspender os pagamentos da dívida aos seus credores. A Grécia fará isso, inevitavelmente, apesar do seu governo ser o mais favorável possível à permanência no Euro, porque a situação catastrófica da sua economia não pode ser disfarçada e porque os alemães se recusam terminantemente a financiar um terceiro resgate a este país. 

Nestas circunstâncias muito particulares, estamos perante uma oportunidade histórica de sairmos desta situação, de sairmos do beco, suspendendo os pagamentos da dívida, reintroduzindo o Escudo, com base naquilo que é a realidade nua e crua: a trajectória, desde há mais de um ano, de «assistência» da troika a Portugal, assemelha-se - como cópia a papel químico - ao que se tem vindo a passar com a Grécia desde há uns três anos atrás. Como para as mesmas causas é sensato pensar-se que obtenham os mesmos efeitos, quanto mais depressa sairmos do caminho errado, melhor! Será um alívio para a economia deste país e muito para além da economia, para a subsistência de Portugal, enquanto estado e nação independente. 
A obsessão com a nossa manutenção dentro da zona euro tem de ser reconhecida como um grande erro. A entrada de Portugal para o Euro, há onze anos, foi a causa primária do que se veio a passar de menos bom, nomeadamente do sobre-endividamento dos sucessivos governos, desde a introdução do euro. Na verdade, a permanência no euro só trouxe claras vantagens para uma camada reduzida de banqueiros, eurocratas e políticos corruptos.

O facto de haver uma moeda comum super-forte (alinhada, na altura, pelo padrão do Marco alemão), foi um factor decisivo do excessivo endividamento, o qual foi encorajado pela banca nacional e dos mais poderosos países do Euro.
Os partidos do chamado «arco do poder» proporcionaram - foram agentes activos - desse endividamento por parte do Estado, mas também estimularam o sobre-endividamento das famílias e das empresas, promovendo políticas super- laxistas. Os bancos foram sempre concordando com tais políticas, pois isso lhes permitia aumentar os lucros, com o aumento dos empréstimos às famílias e às empresas. 
O grave erro dos portugueses foi acreditarem nos referidos dirigentes e darem-lhes confiança, quando estes os estavam a encaminhar para o abismo. Não devem voltar a dar confiança a uma classe política, empresarial e mediática, profundamente corrompidas e que tem enganado sistematicamente o povo. Não me parece sensato insistir nas mesmas «soluções» que têm falhado repetidas vezes, isso seria demonstração de estupidez. 

A ideia de que não podemos fazer nada, senão nos submetermos às medidas da troika para Portugal, é infundida através de discursos sem fim, apenas com o objectivo de levar a cabo o programa de eliminação total de quaisquer restos de Estado Social, com tudo o que isso significa de precarização permanente do vínculo laboral, incerteza completa em relação a situações de desemprego, velhice ou incapacidade, ausência de serviços sociais que não sejam mercantilizados, enfim, um recuo em termos sociais a situações anteriores à segunda metade do século vinte, mas com uma agravante: nessa altura, as pessoas estavam habituadas a lutarem, não tinham a ilusão de que o Estado fosse como um super-papá ou super-mamã, sempre pronto a socorrer os cidadãos em caso de necessidade. Nessa altura, não havia dúvida de que os oprimidos tinham de se unir e lutar colectivamente para defender o pouco que tinham e conquistar algo mais.
 
Agora, as jovens gerações estão anestesiadas, com todas as facilidades ou a ilusão das mesmas, veiculadas pela média, pelas modas especialmente dirigidas aos jovens e que se destinam a fazê-las esquecer quais os seus interesses. As pessoas estão tão manipuladas, que engolem a falácia de que os seus interesses pessoais e particulares estão em oposição ou não têm nada que ver com os interesses dos outros. Assim, os direitos colectivos são completamente ignorados, desprezados. As pessoas estão entregues a si próprias, pela incapacidade em se associarem e agirem em cooperação, para o bem comum. Os grandes do poder económico e politico estão portanto num contexto muito favorável, pois podem fazer tranquilamente o seu jogo, sem risco de serem denunciados, desmascarados e derrubados.

Não serve de nada projectar soluções míticas para a resolução dos nossos problemas, mas isso não significa que deixemos cair os braços! Basta termos a coragem de assumir que os problemas que enfrentamos foram criados -numa certa medida- por nós (por acção ou por inacção) e portanto, são passíveis de superação, se e somente se, formos nós a trabalhar para a sua solução. 

Solidariedade,
Manuel Baptista