Acabar com o Estado social é levar a Europa ao suicídio
Do mesmo modo que os Estados Unidos construíram a sua coesão social com base num patriotismo forte, a União Europeia fez-se a partir de uma ideia de Estado social. Destruí-lo é reduzir o projecto europeu à irrelevância. Por Natália Faria
Catedrática de Ética e
Filosofia Política na Universidade de Valência e membro da Real Academia
de Ciencias Morais e Políticas de Espanha, a espanhola Adela Cortina é
filósofa residente 2013 do Instituto de Filosofia da Universidade do
Porto, onde deixou nos últimos três dias três lições sobre ética na vida
pública.
Uma das suas conferências era sobre democracia autêntica e neuropolítica. Qual é a relação?
A
neuropolítica estuda os valores dos cidadãos quando vão votar. Quando
os cidadãos votam, acreditava-se que o faziam para defender os seus
interesses, mas não é verdade. A biologia demonstrou que temos no
cérebro marcos de valores que definem em quem votamos. Esses marcos
estão ligados à linguagem e despertam quando ouvimos determinadas
palavras. Podem ser palavras como solidariedade, transparência, família.
Aquilo a que se chama o neuromarketingeleitoral pôs-se então a
estudar com que palavras se podem pôr em movimento esses valores. Sempre
se procurou sondar o eleitorado para ver que discurso permitiria
conseguir mais votos, a diferença é que isso se faz agora com base
neurocientífica. Isto começou nos EUA, com alguns neurocientistas
ligados ao Partido Democrata que se perguntavam por que ganhavam os
republicanos habitualmente as eleições. E concluíram que os republicanos
recorriam a uma linguagem que apelava mais aos valores dos
norte-americanos. E então propuseram que os democratas recorressem a uma
linguagem que se sintonizasse mais com os sentimentos dos
norte-americanos. Não digo que [Barack] Obama tenha ganho por isto, mas a
verdade é que ele foi mudando o seu discurso e tornando mais presente a
questão da família, por exemplo.
A viragem da Europa à direita...
....
A direita ocupou-se mais dos valores que conectam mais rapidamente com o
eleitorado, enquanto a esquerda apela a valores mais abstractos como
transparência, verdade e justiça. Mas o que me interessa é a parte da
neuropolítica que trata de ver se os nossos cérebros estão preparados
para viver em sociedades democráticas. Se os nossos cérebros
demonstrarem que somos radicalmente egoístas, é difícil conseguir uma
democracia autêntica. Quando vemos como está a União Europeia (UE) somos
levados a admitir que temos cérebros egoístas que impossibilitam uma
verdadeira democracia. A resposta é que não é assim. Os nossos cérebros
têm uma dimensão egoísta e uma dimensão altruísta.
Que vem da educação?
E
da evolução. O nosso cérebro está conformado de tal maneira que podemos
ser egoístas ou altruístas. É como naquela história em que o chefe
índio estava a contar aos seus netos que em cada homem há dois lobos: um
está a favor da concórdia e da paz, o outro do egoísmo e violência. E
os dois estão a lutar entre si dentro de cada pessoa. Quando os netos
perguntam que lobo ia ganhar, o avô responde: aquele que alimentarem. Se
alimentamos sentimentos de solidariedade e de responsabilidade, podemos
construir boas democracias.
Disse que esta crise é económico-financeira mas também ética e política. Porquê?
Porque
esta crise surgiu da imoralidade pura e dura. Não se trata de, como
dizem os economistas, estarmos a atravessar um mau ciclo, mas de
mentira, fraude, corrupção e das suas consequências. Veja o subprime
nos EUA. Alguém se deu conta de que aquilo não valia nada, e, em vez de
o reconhecer, passou a vender as acções, garantindo que ninguém
soubesse o que estava a vender. Isso é enganar. E há pessoas que são
moralmente responsáveis por isso. A forma como actuam os bancos, como se
incentivou as pessoas a contraírem hipotecas, tudo isso se deveu a
seres humanos que não actuaram como deveriam. Essa é a dimensão ética da
crise.
A crise podia ter sido evitada?
Claro que
há coisas que não podíamos evitar, mas há outras que são da
responsabilidade de pessoas com nomes e apelidos. A UE poderia ter
reagido de outra maneira. O projecto da UE era unir-nos, não só no plano
económico mas também no campo político e no da cidadania. E isso não se
fez. E quando há um problema, em vez de o resolvermos todos juntos,
vão-se afundando os países. Tudo isso tem responsáveis, pessoas que
tomaram certas decisões e que podiam ter tomado outras.
A UE sobreviverá à crise?
Há
que fazer todos os possíveis para que sobreviva. Uma Europa unida
favoreceria todos os países que estão nessa união. Além disso, a Europa
tem uma mensagem a dar ao mundo. A chamada economia social de mercado é
uma experiência única. Somos os únicos com essa economia social, não
selvagem; volátil, mas com saúde pública, educação pública.
Mas a crise está precisamente a fazer recuar o Estado social.
Claro.
Mas isso é negar a essência da Europa. Acabar com o Estado social é
levar a Europa ao suicídio. E se há país em que se defendeu a economia
social foi na Alemanha. E é impossível que a Alemanha não saiba que hoje
todos os países são interdependentes. Se não comprarmos carros alemães,
os alemães não poderão vender os seus carros porque a Europa é o seu
primeiro mercado. Somos interdependentes e temos economias sociais que
nos favoreceram a todos. Económica e socialmente. A nível de trabalho,
da segurança social. Sem isso a Europa não é nada.
Como entender então a destruição do Estado social?
Os
dirigentes políticos não são inteligentes. Não é só o problema de não
terem grandes projectos, mas o de não serem inteligentes. Como dizia
Kant, até um povo de demónios, desde que inteligentes, sabe que lhe
convém mais a cooperação do que o conflito, mais a vida mútua do que o
ataque. Quando nos atacamos uns aos outros, como está a acontecer na
Europa, cria-se pobreza material e ressentimento. As pessoas sentem-se
humilhadas e doridas e isso é mau para todos, também para os que estão
melhor. Gostaria de poder lembrar os agentes políticos e económicos que a
cooperação é muito mais inteligente do que o conflito. É uma questão de
inteligência, nem sequer é uma questão de bondade. Estes estúpidos
estão a procurar inimigos e adversários.
É a Europa a trair a sua própria identidade?
Justamente.
O projecto europeu tem muitas vantagens e a mais importante é a sua
capacidade de criar coesão social. Assim como os norte-americanos
criaram unidade social baseada num patriotismo forte, na Europa criámos
coesão social através dos direitos económicos, sociais, culturais. Essa é
a essência da Europa. E por isso muitos diziam que este projecto
Europeu era superior ao norte-americano ou ao chinês. Ao fazer isto, a
Europa está a ir contra si própria e a condenar-se à miséria e à
irrelevância.
O projecto europeu deve dar um passo em frente sob risco de desaparecer?
Uma
das coisas que nos perdem é que não há povo europeu. Para falar de
democracia, que é o governo de um povo, faz falta um povo e não há povo
europeu. Há espanhóis, portugueses, alemães... Quando votamos para o
Parlamento Europeu não estamos a pensar no bem da Europa, mas nas
vantagens para Portugal, para Espanha... Neste momento, cada país vê a
Europa cada vez mais longínqua e, inclusive, como uma inimiga. É
fundamental criar cidadania europeia. Legalmente, politicamente e
moralmente.
Ainda há tempo?
A alternativa seria
renunciar ao projecto, o que me pareceria criminoso, porque uma união
favorece todos os países europeus. A Europa oferece algo muito
importante que é o Estado social, mas, além disso, nenhum dos seus
países tem qualquer hipótese face a uma China ou uma Índia. Nada. Uns
quantos milhões de habitantes em cada país que não vão a nenhum sítio.
Sozinho, nenhum país europeu conta. Se estivermos unidos, somos uma voz.
Como vê os movimentos de cidadãos que lideraram os protestos em vários países?
Foram
uma reacção necessária. Porque a situação era verdadeiramente injusta e
era estranho que ninguém dissesse nada. O que acontece é que estes
movimentos não estão estruturados, protestam e depois desvanecem-se. O
que eles têm que fazer agora é canalizar-se. Em Espanha, algumas
associações de cidadãos deram esse passo e estão a apresentar
reivindicações muito concretas. Há uma associação que exige mudanças nos
partidos. Apresentou uma proposta em que diz que os partidos são
cruciais para a democracia mas funcionam mal. E apresenta dez mudanças,
concretas e trabalhadas, para os partidos políticos. Estão a recolher
500 mil assinaturas para levar o tema ao Parlamento. E ao político que
quer ganhar votos tem que interessar o que dizem 500 mil pessoas. Creio
que este é o grande momento da cidadania activa.
Numa Europa
envelhecida, é sustentável o modo como nos organizamos: nascer, estudar,
trabalhar e depois a reforma, numa idade distante da meta estabelecida
pela esperança média de vida?
Creio que sim. Existem, como dizia [François] Mitterrand, muitas jazidas
de emprego que não foram exploradas. Desde que, claro, em vez de
seguirmos por este caminho da economia financeira, entremos no caminho
da economia produtiva - a crise tem muito que ver a financeirização
da economia que criou uma situação de descontrolo que faz com que haja
tão poucos postos de trabalho, com que os bancos não emprestem e as
empresas não criem emprego. O caminho tem que ser priorizar a economia
produtiva. E há muitos movimentos que estão a tentar mudar o modelo. Um
deles apresenta o modelo da economia do bem comum, proposto há muito
tempo por um economista austríaco, e que o que faz é potenciar a
economia produtiva de riqueza, de serviços e de bens. Se a economia
financeira se reduzir face à economia real e produtiva, esse modelo em
que uma pessoa nasce, educa-se e tem um trabalho e depois uma reforma
pode manter-se. É o mais razoável.
Mesmo se a morte das sociedades de pleno emprego já foi tantas vezes decretada?
A
sociedade de emprego pleno tem que voltar. E tem que voltar porque o
emprego não é unicamente um meio de vida mas um modo de identificação e
de participação na vida social. E é também uma fonte de auto-estima. Não
ter trabalho é um drama pessoal e não só por uma questão financeira.
Ao
fim das sociedades de pleno emprego soma-se uma outra ideia que defende
que o rendimento dos cidadãos terá que ser desligado do trabalho.
Um
dos projectos que deveria ser posto em marcha é o do rendimento de
cidadania que consiste em atribuir um rendimento básico a todos os
cidadãos. Quem quisesse trabalhar poderia fazê-lo, mas se alguns
preferissem viver desse mínimo necessário para viver com dignidade...
Isto tem suscitado muitíssimas discussões.
A discussão já chegou aos partidos?
Alguns
partidos políticos já o têm no programa eleitoral. Em Espanha, por
exemplo. A ideia é que, se uma comunidade política se preocupa com os
seus cidadãos, então tem que se preocupar com a sua sobrevivência e isso
passa por assegurar a todos um rendimento básico que lhes permita
sobreviver. O objectivo é conseguir que o dinheiro não se ganhe pelo
trabalho mas por ser cidadão. E então que seria o trabalho? Uma forma de
participação social.
E como se produziria riqueza?
Muitos
dos defensores deste modelo são economistas. E nalguns países já está
demonstrado que o modelo é viável. Em Espanha e na Bélgica, os cálculos
mostram que seria viável, porque, além do mais, não há tanta gente que
quisesse viver sem fazer nada. A maioria quer ter um ofício, participar.
A diferença é que a sobrevivência não dependeria disso.
Seria libertar o ser humano da luta pela subsistência?
Uma
forma de garantir liberdade real para todos. Se toda a gente tivesse um
rendimento assegurado, seria mais fácil que todos trabalhassem em algo
de que gostam. Aí, alguns trabalhos teriam que ser mais bem pagos. Ser
mineiro, por exemplo, é ganhar pouquíssimo e arriscar muitíssimo. Com
uma renda básica, haveria que pagar mais aos mineiros para que estes
trabalhassem. Creio que há que mobilizar as pessoas para isto.
Soa utópico numa altura em que milhões estão reduzidos à luta pela subsistência.
Não
é uma utopia para países ricos. Os cálculos, que levam em conta os que
trabalham e os que não trabalham e usufruem de algum tipo de ajuda,
demonstram que isto não é caro. São coisas que se podem articular se
houver vontade. Vivemos uma situação crítica de empobrecimento maciço,
mas é precisamente nestes momentos que temos que criar alternativas.