22 abril, 2013

Adela Cortina

No Público de dia 20 de Abril, outra entrevista com mais uma filósofa, sobre o mundo actual. Importante ler para pensar e sabermos o que pensar da nossa realidade.

Acabar com o Estado social é levar a Europa ao suicídio

Do mesmo modo que os Estados Unidos construíram a sua coesão social com base num patriotismo forte, a União Europeia fez-se a partir de uma ideia de Estado social. Destruí-lo é reduzir o projecto europeu à irrelevância. Por Natália Faria
Catedrática de Ética e Filosofia Política na Universidade de Valência e membro da Real Academia de Ciencias Morais e Políticas de Espanha, a espanhola Adela Cortina é filósofa residente 2013 do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, onde deixou nos últimos três dias três lições sobre ética na vida pública. 

Uma das suas conferências era sobre democracia autêntica e neuropolítica. Qual é a relação?
A neuropolítica estuda os valores dos cidadãos quando vão votar. Quando os cidadãos votam, acreditava-se que o faziam para defender os seus interesses, mas não é verdade. A biologia demonstrou que temos no cérebro marcos de valores que definem em quem votamos. Esses marcos estão ligados à linguagem e despertam quando ouvimos determinadas palavras. Podem ser palavras como solidariedade, transparência, família. Aquilo a que se chama o neuromarketingeleitoral pôs-se então a estudar com que palavras se podem pôr em movimento esses valores. Sempre se procurou sondar o eleitorado para ver que discurso permitiria conseguir mais votos, a diferença é que isso se faz agora com base neurocientífica. Isto começou nos EUA, com alguns neurocientistas ligados ao Partido Democrata que se perguntavam por que ganhavam os republicanos habitualmente as eleições. E concluíram que os republicanos recorriam a uma linguagem que apelava mais aos valores dos norte-americanos. E então propuseram que os democratas recorressem a uma linguagem que se sintonizasse mais com os sentimentos dos norte-americanos. Não digo que [Barack] Obama tenha ganho por isto, mas a verdade é que ele foi mudando o seu discurso e tornando mais presente a questão da família, por exemplo.
A viragem da Europa à direita...
.... A direita ocupou-se mais dos valores que conectam mais rapidamente com o eleitorado, enquanto a esquerda apela a valores mais abstractos como transparência, verdade e justiça. Mas o que me interessa é a parte da neuropolítica que trata de ver se os nossos cérebros estão preparados para viver em sociedades democráticas. Se os nossos cérebros demonstrarem que somos radicalmente egoístas, é difícil conseguir uma democracia autêntica. Quando vemos como está a União Europeia (UE) somos levados a admitir que temos cérebros egoístas que impossibilitam uma verdadeira democracia. A resposta é que não é assim. Os nossos cérebros têm uma dimensão egoísta e uma dimensão altruísta.
Que vem da educação?
E da evolução. O nosso cérebro está conformado de tal maneira que podemos ser egoístas ou altruístas. É como naquela história em que o chefe índio estava a contar aos seus netos que em cada homem há dois lobos: um está a favor da concórdia e da paz, o outro do egoísmo e violência. E os dois estão a lutar entre si dentro de cada pessoa. Quando os netos perguntam que lobo ia ganhar, o avô responde: aquele que alimentarem. Se alimentamos sentimentos de solidariedade e de responsabilidade, podemos construir boas democracias.
Disse que esta crise é económico-financeira mas também ética e política. Porquê?
Porque esta crise surgiu da imoralidade pura e dura. Não se trata de, como dizem os economistas, estarmos a atravessar um mau ciclo, mas de mentira, fraude, corrupção e das suas consequências. Veja o subprime nos EUA. Alguém se deu conta de que aquilo não valia nada, e, em vez de o reconhecer, passou a vender as acções, garantindo que ninguém soubesse o que estava a vender. Isso é enganar. E há pessoas que são moralmente responsáveis por isso. A forma como actuam os bancos, como se incentivou as pessoas a contraírem hipotecas, tudo isso se deveu a seres humanos que não actuaram como deveriam. Essa é a dimensão ética da crise.
A crise podia ter sido evitada?
Claro que há coisas que não podíamos evitar, mas há outras que são da responsabilidade de pessoas com nomes e apelidos. A UE poderia ter reagido de outra maneira. O projecto da UE era unir-nos, não só no plano económico mas também no campo político e no da cidadania. E isso não se fez. E quando há um problema, em vez de o resolvermos todos juntos, vão-se afundando os países. Tudo isso tem responsáveis, pessoas que tomaram certas decisões e que podiam ter tomado outras.
A UE sobreviverá à crise?
Há que fazer todos os possíveis para que sobreviva. Uma Europa unida favoreceria todos os países que estão nessa união. Além disso, a Europa tem uma mensagem a dar ao mundo. A chamada economia social de mercado é uma experiência única. Somos os únicos com essa economia social, não selvagem; volátil, mas com saúde pública, educação pública.
Mas a crise está precisamente a fazer recuar o Estado social.
Claro. Mas isso é negar a essência da Europa. Acabar com o Estado social é levar a Europa ao suicídio. E se há país em que se defendeu a economia social foi na Alemanha. E é impossível que a Alemanha não saiba que hoje todos os países são interdependentes. Se não comprarmos carros alemães, os alemães não poderão vender os seus carros porque a Europa é o seu primeiro mercado. Somos interdependentes e temos economias sociais que nos favoreceram a todos. Económica e socialmente. A nível de trabalho, da segurança social. Sem isso a Europa não é nada.
Como entender então a destruição do Estado social?
Os dirigentes políticos não são inteligentes. Não é só o problema de não terem grandes projectos, mas o de não serem inteligentes. Como dizia Kant, até um povo de demónios, desde que inteligentes, sabe que lhe convém mais a cooperação do que o conflito, mais a vida mútua do que o ataque. Quando nos atacamos uns aos outros, como está a acontecer na Europa, cria-se pobreza material e ressentimento. As pessoas sentem-se humilhadas e doridas e isso é mau para todos, também para os que estão melhor. Gostaria de poder lembrar os agentes políticos e económicos que a cooperação é muito mais inteligente do que o conflito. É uma questão de inteligência, nem sequer é uma questão de bondade. Estes estúpidos estão a procurar inimigos e adversários.
É a Europa a trair a sua própria identidade?
Justamente. O projecto europeu tem muitas vantagens e a mais importante é a sua capacidade de criar coesão social. Assim como os norte-americanos criaram unidade social baseada num patriotismo forte, na Europa criámos coesão social através dos direitos económicos, sociais, culturais. Essa é a essência da Europa. E por isso muitos diziam que este projecto Europeu era superior ao norte-americano ou ao chinês. Ao fazer isto, a Europa está a ir contra si própria e a condenar-se à miséria e à irrelevância.
O projecto europeu deve dar um passo em frente sob risco de desaparecer?
Uma das coisas que nos perdem é que não há povo europeu. Para falar de democracia, que é o governo de um povo, faz falta um povo e não há povo europeu. Há espanhóis, portugueses, alemães... Quando votamos para o Parlamento Europeu não estamos a pensar no bem da Europa, mas nas vantagens para Portugal, para Espanha... Neste momento, cada país vê a Europa cada vez mais longínqua e, inclusive, como uma inimiga. É fundamental criar cidadania europeia. Legalmente, politicamente e moralmente.
Ainda há tempo?
A alternativa seria renunciar ao projecto, o que me pareceria criminoso, porque uma união favorece todos os países europeus. A Europa oferece algo muito importante que é o Estado social, mas, além disso, nenhum dos seus países tem qualquer hipótese face a uma China ou uma Índia. Nada. Uns quantos milhões de habitantes em cada país que não vão a nenhum sítio. Sozinho, nenhum país europeu conta. Se estivermos unidos, somos uma voz.
Como vê os movimentos de cidadãos que lideraram os protestos em vários países?
Foram uma reacção necessária. Porque a situação era verdadeiramente injusta e era estranho que ninguém dissesse nada. O que acontece é que estes movimentos não estão estruturados, protestam e depois desvanecem-se. O que eles têm que fazer agora é canalizar-se. Em Espanha, algumas associações de cidadãos deram esse passo e estão a apresentar reivindicações muito concretas. Há uma associação que exige mudanças nos partidos. Apresentou uma proposta em que diz que os partidos são cruciais para a democracia mas funcionam mal. E apresenta dez mudanças, concretas e trabalhadas, para os partidos políticos. Estão a recolher 500 mil assinaturas para levar o tema ao Parlamento. E ao político que quer ganhar votos tem que interessar o que dizem 500 mil pessoas. Creio que este é o grande momento da cidadania activa.
Numa Europa envelhecida, é sustentável o modo como nos organizamos: nascer, estudar, trabalhar e depois a reforma, numa idade distante da meta estabelecida pela esperança média de vida?
Creio que sim. Existem, como dizia [François] Mitterrand, muitas jazidas de emprego que não foram exploradas. Desde que, claro, em vez de seguirmos por este caminho da economia financeira, entremos no caminho da economia produtiva - a crise tem muito que ver a financeirização da economia que criou uma situação de descontrolo que faz com que haja tão poucos postos de trabalho, com que os bancos não emprestem e as empresas não criem emprego. O caminho tem que ser priorizar a economia produtiva. E há muitos movimentos que estão a tentar mudar o modelo. Um deles apresenta o modelo da economia do bem comum, proposto há muito tempo por um economista austríaco, e que o que faz é potenciar a economia produtiva de riqueza, de serviços e de bens. Se a economia financeira se reduzir face à economia real e produtiva, esse modelo em que uma pessoa nasce, educa-se e tem um trabalho e depois uma reforma pode manter-se. É o mais razoável.
Mesmo se a morte das sociedades de pleno emprego já foi tantas vezes decretada?
A sociedade de emprego pleno tem que voltar. E tem que voltar porque o emprego não é unicamente um meio de vida mas um modo de identificação e de participação na vida social. E é também uma fonte de auto-estima. Não ter trabalho é um drama pessoal e não só por uma questão financeira.
Ao fim das sociedades de pleno emprego soma-se uma outra ideia que defende que o rendimento dos cidadãos terá que ser desligado do trabalho.
Um dos projectos que deveria ser posto em marcha é o do rendimento de cidadania que consiste em atribuir um rendimento básico a todos os cidadãos. Quem quisesse trabalhar poderia fazê-lo, mas se alguns preferissem viver desse mínimo necessário para viver com dignidade... Isto tem suscitado muitíssimas discussões.
A discussão já chegou aos partidos?
Alguns partidos políticos já o têm no programa eleitoral. Em Espanha, por exemplo. A ideia é que, se uma comunidade política se preocupa com os seus cidadãos, então tem que se preocupar com a sua sobrevivência e isso passa por assegurar a todos um rendimento básico que lhes permita sobreviver. O objectivo é conseguir que o dinheiro não se ganhe pelo trabalho mas por ser cidadão. E então que seria o trabalho? Uma forma de participação social.
E como se produziria riqueza?
Muitos dos defensores deste modelo são economistas. E nalguns países já está demonstrado que o modelo é viável. Em Espanha e na Bélgica, os cálculos mostram que seria viável, porque, além do mais, não há tanta gente que quisesse viver sem fazer nada. A maioria quer ter um ofício, participar. A diferença é que a sobrevivência não dependeria disso.
Seria libertar o ser humano da luta pela subsistência?
Uma forma de garantir liberdade real para todos. Se toda a gente tivesse um rendimento assegurado, seria mais fácil que todos trabalhassem em algo de que gostam. Aí, alguns trabalhos teriam que ser mais bem pagos. Ser mineiro, por exemplo, é ganhar pouquíssimo e arriscar muitíssimo. Com uma renda básica, haveria que pagar mais aos mineiros para que estes trabalhassem. Creio que há que mobilizar as pessoas para isto.
Soa utópico numa altura em que milhões estão reduzidos à luta pela subsistência.
Não é uma utopia para países ricos. Os cálculos, que levam em conta os que trabalham e os que não trabalham e usufruem de algum tipo de ajuda, demonstram que isto não é caro. São coisas que se podem articular se houver vontade. Vivemos uma situação crítica de empobrecimento maciço, mas é precisamente nestes momentos que temos que criar alternativas.

 

21 abril, 2013

Anselm Jappe


Hoje no Público, uma entrevista importante, para pensar.

O que faremos se o sistema já não conseguir criar trabalho?

No capitalismo, é a relação com o trabalho que nos define, diz o filósofo Anselm Jappe, em Lisboa a convite do Teatro Maria Matos. Mas o sistema é um "castelo de cartas que começa a perder peças". E é tempo de repensar o conceito de trabalho
O capitalismo distorceu a ideia de trabalho, desligando-a das necessidades reais da sociedade. Trabalhamos a um ritmo cada vez mais acelerado apenas para alimentar a lógica do sistema. Mas este parece ter entrado numa rota de autodestruição porque, com a exclusão de cada vez mais gente do mercado de trabalho, há também cada vez mais gente excluída do consumo, afirma o filósofo Anselm Jappe, nascido em 1962 na Alemanha e que hoje vive entre França e Itália.
Jappe - que tem três livros editados em Portugal pela Antígona, entre os quais As Aventuras da Mercadoria (2006) - faz uma conferência, na próxima terça-feira, dia 23, no Teatro Maria Matos, no âmbito do ciclo Transição. Na conferência (em português), com curadoria de António Guerreiro, Jappe vai explicar por que devemos repensar o conceito de trabalho.

A sua conferência chama-se Depois do Fim do Trabalho: A caminho de uma humanidade supérflua? O fim do trabalho está no nosso horizonte?
Essa afirmação teria espantado muita gente há algumas décadas, porque a sociedade moderna é por definição uma sociedade do trabalho, onde se coloca sempre mais gente a trabalhar. Mas o trabalho, nesta lógica, não é uma coisa que tenha existido sempre.
Existe desde quando?
Na Antiguidade, não existia uma palavra "trabalho" que incluísse todas as actividades. Seria impossível imaginar, por exemplo, que a actividade de um padre, de um camponês, ou de um escravo fossem consideradas trabalho. Cada actividade servia para realizar um fim. O que contava era esse fim - ter coisas para comer, realizar um serviço de Deus, fazer uma campanha militar, etc. O que contava era a satisfação de uma necessidade e o trabalho era o meio para isso.
Com a sociedade industrial, é o contrário, trabalhamos o mais possível porque é o trabalho que nós dá o dinheiro, e toda a satisfação das necessidades vem depois. É preciso trabalhar sempre mais para aumentar a produção. Um trabalho é um gasto de energia que se mede em tempo. Se eu faço uma mesa ou dou uma aula na universidade, são duas coisas completamente diferentes, mas posso sempre dizer "trabalhei uma hora". Esse tempo exprime-se numa quantidade de dinheiro.
Que é valorizada de forma diferente se for o trabalho de um professor universitário ou de um operário.
Uma hora de um trabalhador especializado pode valer mais do que uma de um não-especializado. É uma diferença quantitativa, mas não tem nada a ver com o conteúdo da produção.
Temos uma sociedade industrial que se baseia no uso de máquinas e de tecnologia, que servem para economizar trabalho. Seria lógico que precisássemos de trabalhar menos porque teríamos todas as nossas necessidades preenchidas com um mínimo de actividade. É exactamente o contrário que acontece. Trabalhamos hoje muito mais do que antes. Basta fazer uma comparação entre o nosso ritmo de vida e o dos nossos avós.
Hoje tudo gira em torno do trabalho. Podemos ser trabalhadores ou desempregados, mas somos sempre definidos pela nossa relação com o trabalho.
No sistema capitalista, o valor não é dado pela utilidade das coisas, mas pelo trabalho que foi necessário para as fazer. Quanto mais trabalhamos para fazer uma coisa, mais isso acrescenta valor ao produto. O lucro do capitalista provém de trabalharmos mais do que o necessário, aquilo a que Marx chama mais-valia.
Por outro lado, o capitalismo fez do trabalho o carburante da vida social. Nas sociedades anteriores, essa vida social baseava-se em questões como a dominação directa do solo, as ideias de honra ou as ideias religiosas. Na sociedade moderna somos todos definidos pelo trabalho.
Mas nas últimas décadas o trabalho começou a esgotar-se. Há cada vez menos trabalho por causa da evolução tecnológica. Podia ser uma boa notícia - vamos trabalhar menos e ter tudo o necessário. Mas é o contrário que acontece. As pessoas vão para o desemprego, não há uma verdadeira redistribuição da actividade, e os que estão no desemprego são também afastados do consumo.
O que contraria a lógica do sistema.
Sim, os que já não podem trabalhar já não têm dinheiro para consumir. É uma espécie de auto-abolição do capitalismo. Numa fábrica faz-se uma camisa em cinco minutos quando anteriormente um artesão precisava de uma hora. Isto significa que há menos trabalho investido na camisa. Numa sociedade racional diríamos "vamos fazer a mesma camisa que anteriormente, mas trabalhando apenas cinco minutos". Mas é o contrário que acontece: obriga-se o operário a trabalhar mais, a fazer mais camisas, e depois é preciso vendê-las. Se se produz cada vez mais, é para contrariar o facto de que em cada mercadoria é investido menos trabalho e portanto a mais-valia é mais reduzida.
Mas nem sempre a substituição dos humanos por máquinas retira valor ao produto final. Se eu for tomar um café, ele pode ser-me servido por uma pessoa ou ser retirado de uma máquina e mesmo assim eu pagar o mesmo por ele.
É aí que está a contradição - se uma empresa substituir um trabalhador por uma máquina, ela vai ganhar mais porque a máquina tem um custo menor. As pessoas pagam o café como antes, mas a empresa gasta menos em salários. Mas se todas as empresas fizerem o mesmo, é o próprio sistema que perde porque há menos utilização da força de trabalho. As empresas são contra o interesse do sistema. Foi assim desde o princípio.
E, no entanto, as máquinas deixar-nos-iam mais tempo livre para nos dedicar-se a outras actividades, eventualmente com maior utilidade.
Isso seria a situação ideal. Mas no sistema capitalista nem todas as actividades são valorizadas, apenas as que podem reproduzir o capital investido. O que fazemos para nós ou para os nossos amigos não é considerado trabalho porque não entra na lógica do mercado. A actividade útil para nós ou para os outros é muito diferente do que é considerado trabalho no sistema capitalista. Podemos dizer de um casal que ele trabalha numa fábrica, é trabalho, a mulher não trabalha, ocupa-se dos filhos e do sogro que está doente. A definição do trabalho não tem nada a ver com o conteúdo da actividade.
As actividades produtivas estão necessariamente ligadas à produção de mercadorias?
Não, mas têm que entrar num ciclo em que o capital se reproduz. Vejamos uma fábrica: o operário faz um carro, o carro é vendido no mercado e isso representa um lucro para o capitalista, e portanto é um trabalho produtivo. É preciso também limpar a fábrica, mas os que o fazem não dão nenhum lucro, é apenas uma despesa necessária, que não contribui em nada para o lucro, pelo contrário.
Tendemos a ver o capitalismo como um sistema alimentado por alguns e imposto a outros. Mas não é assim que o vê.
O capitalismo tem uma lógica anónima, impessoal. Os capitalistas executam apenas as leis de um sistema que os ultrapassa. Existe, claro, responsabilidade individual, mas isso conta menos do que a lógica de todo o sistema. Hoje há de novo uma forte tendência de pensar que o problema é que há um grupo de pessoas que são demasiado ávidas, os especuladores, banqueiros, etc., que exageram e põem em risco todo o sistema baseado em trabalhadores honestos.
Há uma tendência para a personalização, que se encontra também muito em movimentos como os Indignados ou o
Occupy Wall Street. Isto pode ser perigoso porque é um pouco o que aconteceu nos anos 30 com o sistema fascista, em que a cólera social se voltou contra um grupo de pessoas, nesse caso, contra a finança judaica.
O verdadeiro problema é que não há uma distribuição das actividades em função das necessidades sociais, como faria uma sociedade razoável, mas há simplesmente esta necessidade de trabalhar seja no que for para produzir coisas que não sabemos para que servem. Isso é algo que mesmo a esquerda desvalorizara, porque se preocupou sempre muito com a questão da justiça social, por perceber por que é que uns ganhavam mais do que outros.
Se as pessoas tendem a personalizar, é porque é muito difícil lutar contra um sistema sem rosto.
É mais fácil ir para a rua protestar contra os banqueiros. Mas é fácil dizer que nós somos apenas as vítimas, quando a verdade é que todos fazemos parte deste sistema, desta lógica.
Parece difícil estar fora do sistema.
Sim, participamos todos, por exemplo, na lógica da concorrência, é algo que nos invadiu completamente. Estamos sempre a tentar vender-nos, ser mais fortes do que os outros, ter sucesso no mercado. Absorvemos completamente a lógica capitalista, que não é natural, porque, no passado, a concorrência tinha um papel muito menor na vida quotidiana.
Mas não considera positiva a ideia de que muita coisa depende das nossas capacidades, e que não estamos condenados a um lugar determinado, como num sistema de castas?
A modernidade apresentou-se como uma espécie de libertação em relação ao sistema feudal, mas é uma liberdade aparente, porque é uma lógica destruidora que leva as pessoas a fazerem tudo o que podem fazer, e a considerar o mundo como uma espécie de material onde se podem realizar as próprias aspirações. É verdade que o modernismo tem um dinamismo que faltava às sociedades anteriores, mas a pouco e pouco este dinamismo tornou-se uma espécie de individualismo que tomou conta das pessoas nos países ocidentais.
Olhamos para nós próprios como empreendedores, como alguém que está sempre em busca de oportunidades. É preciso fazer desporto para estar em boa forma para trabalhar, ou frequentar meios em que se conheçam pessoas que possam ajudar-nos a ter outro trabalho interessante.
Mas, pelo menos teoricamente, as coisas dependem mais da nossa vontade individual.
A ideologia oficial diz que cada um pode fazer da sua vida o que quer, que não somos marcados pelo facto de termos nascido na Suécia ou em África, mas na realidade não é assim. Não é como no Monopólio, em que todos começam com a mesma quantia. Não há uma igualdade de oportunidades.
Mas mesmo que ela existisse, era preciso perguntarmo-nos o que queríamos fazer. Uma sociedade razoável organizaria um acordo colectivo sobre o que é necessário fazer para vivermos bem, e depois pensaria como o optimizar com o mínimo de esforço possível, com cada um a contribuir com a sua parte para a vida colectiva e durante o resto do tempo a dedicar-se a fazer o que quisesse.
Existe um espaço fora do sistema?
É evidente que sofremos cada vez mais com esta situação. As pessoas que trabalham sofrem, fala-se cada vez mais de suicídios ligados ao trabalho, há uma pressão enorme nas grandes empresas, sabe-se que se vai despedir no próximo ano metade das pessoas, e então todos trabalham como loucos para agradar a este deus que é a lógica da rentabilidade. E os que não trabalham sofrem porque são socialmente desvalorizados.
Existe actualmente uma série de iniciativas ligadas ao decrescimento, economias alternativas, grupos de trocas locais, ou de regresso ao campo, trocas entre produtores biológicos. Tenho muito a criticar-lhes, mas penso que, pelo menos, demonstram um interesse real de encontrar um caminho que não seja apenas uma gestão alternativa da mesma sociedade industrial baseada no dinheiro.
Durante muito tempo a esquerda limitou-se a propor uma distribuição mais justa desses conteúdos. Hoje existe pelo menos a tentativa de procurar ir para além disso. Mas há sempre outras forças sociais que, pelo contrário, continuam a querer apanhar o último pedaço deste bolo que é cada vez mais pequeno.
O capitalismo está moribundo?
Muitas vezes o ser humano não é rentável do ponto de vista do sistema, e isso significa que vai também deixar de poder consumir. Na Europa distribui-se ainda algum dinheiro pelos que já não são rentáveis, mas também aí há uma pressão enorme para cortar, cortar. Há esta sensação de que existem pessoas que são supérfluas do ponto de vista do sistema. Para a Alemanha, a Grécia tornou-se um país supérfluo. E dentro dos países há camadas da população às quais já não se sabe o que fazer.
Os Governos falam num regresso ao crescimento, todos querem exportar para os novos mercados emergentes.
Todos querem exportar, ninguém quer importar. Mas não é possível um mundo em que todos exportem e ninguém importe. Aquilo a que chamamos o milagre económico chinês baseia-se também nas exportações, sobretudo para os EUA. Se os países pequenos entram na lógica liberal das exportações, é terrível. Há países que em África produziam o suficiente para se alimentarem - viviam modestamente, mas com o suficiente - e quebraram tudo em nome das exportações, hoje só produzem bananas e se de repente o mercado das bananas cair é toda a economia que cai.
É preciso libertarmo-nos desta ideia de produzir em primeiro lugar para um mercado mundial.
A globalização aproximou-nos de outras culturas. Se nos fechamos nas aldeias...
A mobilidade global é bastante unilateral. Nunca tivemos na Europa fronteiras tão guardadas em relação a tudo o que é exterior. Há uma mobilidade para os turistas, e uma mobilidade para os que têm que ir procurar trabalho.
A alternativa não seria nem um regresso aos Estados-nações - isso parece-me uma ideologia bastante perigosa. Uma sociedade pós-capitalista deve ter uma base quotidiana nas realidades locais, comermos maçãs que cresceram no pomar do vizinho e não na Nova Zelândia. Isso, claro, não impede uma comunicação cultural e intelectual com pessoas que vivem noutros locais. Há pessoas que optam por trabalhar menos e reduzir as suas necessidades materiais, organizando-se com outras para terem uma vida satisfatória que não passa necessariamente pela compra de produtos ou serviços.
Mas disse que é crítico também desses movimentos. Porquê?
Porque pensam que é suficiente limitarem-se a essas medidas. Comprar os nossos produtos no produtor biológico pode ser um primeiro passo.
Qual seria o segundo?
Um movimento social que ocupasse directamente os ateliers, as fábricas. O capitalismo abandona muitas capacidades produtoras, porque já não são rentáveis, mas estas poderiam ainda funcionar bem.
Está a falar de ocupações, de gestão comunitária, faz lembrar o 25 de Abril.
Há uma memória histórica que vale a pena recuperar. Evidentemente que não vamos começar do zero.
Mas o sistema integrou rapidamente essas experiências.
Não quer dizer que as coisas se passem da mesma maneira, porque hoje em dia o sistema está muito mais enfraquecido. Hoje vivemos um momento inverso ao dos anos 70 e 80. O sistema está em recuo. Os que pertencem ao ciclo produção-consumo são cada vez menos, mesmo nos países mais ricos. Há um número cada vez maior de pessoas que não encontram lugar dentro do sistema. Se uma fábrica foi abandonada porque foi deslocalizada, seria possível tomá-la e fazer nela alguma coisa de útil.
Uma mudança depende de uma espécie de contrário social prévio. É necessário um número elevado de pessoas.
Vejo aí outro risco - isso pode facilmente tornar-se uma espécie de gestão da pobreza. A pobreza está a aumentar e o Estado poderia muito bem dar uma parcela da gestão social a este género de economia alternativa, dizendo: "Desenrasquem-se".
É ridículo, por exemplo, ver as pessoas que recuperam no final do mercado os legumes que foram deitados fora. Isso torna-se uma valorização da sobrevivência no dia-a-dia que é absurda se se continua ao nível social global a desperdiçar imenso. A ideia da simplicidade voluntária pode abrir um discurso de valorização da pobreza.
Para criar um sistema pós-capitalista usamos modelos anteriores ou é preciso inventar tudo?
O capitalismo cumpriu tão pouco as suas promessas que encontramos hoje em alguns meios uma espécie de nostalgia de regresso ao passado. Mas é certo que não vamos voltar atrás, o risco aí é o de arcaísmos violentos. É claro que a solução só pode estar à nossa frente. Podemos ter uma vida satisfatória com uma produção muito reduzida em relação ao que temos hoje.
Vê o futuro ideal como um mundo em que as pessoas trabalham menos, o trabalho é mais bem distribuído...
... em que se definem as necessidades, aquilo que queremos fazer na vida e como o podemos realizar com o menor esforço possível. É preciso começar a pensar a partir dos resultados e não do trabalho. Muitas das necessidades de hoje são compensações pelo trabalho. Uma vida dedicada apenas ao trabalho é tão pouco satisfatória que é preciso depois ter compensações, televisão, carros, viagens, jogos de computador.
Até que ponto é que essa mudança passa pela política?
Quando pensamos em política, pensamos na ideia de que o Estado deve garantir uma melhor distribuição das coisas. Mas vemos que a política não é solução, porque depende estruturalmente do dinheiro. Como há menos dinheiro à disposição do Estado para ser distribuído, o Estado tem cada vez menos poder. A esquerda, os alter-mundialistas, evocam sempre um papel mais forte do Estado. Como se o capital fosse o pólo negativo e o Estado o positivo. Mas se o Estado já não pode cobrar impostos, já não tem nada para redistribuir.
Sem Estado, como é que garantimos a protecção aos mais desfavorecidos? Não há um risco de que a lógica local seja a da caridade da aldeia?
O Estado social ainda é muito jovem e começa já a ser desmantelado um pouco por todo o lado. Existem muitos Estados onde não há praticamente ajudas públicas. Enganamo-nos se pensamos que as preocupações sociais são o coração do Estado.
Que organização social defende?
A auto-organização baseada nos bairros das cidades, unidades pequenas que decidem da sua própria vida, e depois se organizam a um nível federal com outras. Neste momento, o capitalismo é um castelo de cartas que começa a perder as peças. Não é possível dizer quanto tempo demorará a cair, mas os sinais são cada vez mais evidentes.


 

01 abril, 2013

A escola integra ou exclui?




Que faz a nossa escola?
Que podem as pessoas que trabalham nas escolas fazer?
Será que todos têm consciência da importância social do seu trabalho?