Hoje no Público, uma entrevista importante, para pensar.
O que faremos se o sistema já não conseguir criar trabalho?
No capitalismo, é a relação com o trabalho que nos define, diz o filósofo Anselm Jappe, em Lisboa a convite do Teatro Maria Matos. Mas o sistema é um "castelo de cartas que começa a perder peças". E é tempo de repensar o conceito de trabalhoO capitalismo distorceu a ideia de trabalho, desligando-a das necessidades reais da sociedade. Trabalhamos a um ritmo cada vez mais acelerado apenas para alimentar a lógica do sistema. Mas este parece ter entrado numa rota de autodestruição porque, com a exclusão de cada vez mais gente do mercado de trabalho, há também cada vez mais gente excluída do consumo, afirma o filósofo Anselm Jappe, nascido em 1962 na Alemanha e que hoje vive entre França e Itália.
Jappe - que tem três livros editados em Portugal pela Antígona, entre os quais As Aventuras da Mercadoria (2006) - faz uma conferência, na próxima terça-feira, dia 23, no Teatro Maria Matos, no âmbito do ciclo Transição. Na conferência (em português), com curadoria de António Guerreiro, Jappe vai explicar por que devemos repensar o conceito de trabalho.
A sua conferência chama-se Depois do Fim do Trabalho: A caminho de uma humanidade supérflua? O fim do trabalho está no nosso horizonte?
Essa afirmação teria espantado muita gente há algumas décadas, porque a
sociedade moderna é por definição uma sociedade do trabalho, onde se
coloca sempre mais gente a trabalhar. Mas o trabalho, nesta lógica, não é
uma coisa que tenha existido sempre.
Existe desde quando?
Na Antiguidade, não existia uma palavra "trabalho" que incluísse todas
as actividades. Seria impossível imaginar, por exemplo, que a actividade
de um padre, de um camponês, ou de um escravo fossem consideradas
trabalho. Cada actividade servia para realizar um fim. O que contava era
esse fim - ter coisas para comer, realizar um serviço de Deus, fazer
uma campanha militar, etc. O que contava era a satisfação de uma
necessidade e o trabalho era o meio para isso.
Com a sociedade industrial, é o contrário, trabalhamos o mais possível
porque é o trabalho que nós dá o dinheiro, e toda a satisfação das
necessidades vem depois. É preciso trabalhar sempre mais para aumentar a
produção. Um trabalho é um gasto de energia que se mede em tempo. Se eu
faço uma mesa ou dou uma aula na universidade, são duas coisas
completamente diferentes, mas posso sempre dizer "trabalhei uma hora".
Esse tempo exprime-se numa quantidade de dinheiro.
Que é valorizada de forma diferente se for o trabalho de um professor universitário ou de um operário.
Uma hora de um trabalhador especializado pode valer mais do que uma de
um não-especializado. É uma diferença quantitativa, mas não tem nada a
ver com o conteúdo da produção.
Temos uma sociedade industrial que se baseia no uso de máquinas e de
tecnologia, que servem para economizar trabalho. Seria lógico que
precisássemos de trabalhar menos porque teríamos todas as nossas
necessidades preenchidas com um mínimo de actividade. É exactamente o
contrário que acontece. Trabalhamos hoje muito mais do que antes. Basta
fazer uma comparação entre o nosso ritmo de vida e o dos nossos avós.
Hoje tudo gira em torno do trabalho. Podemos ser trabalhadores ou
desempregados, mas somos sempre definidos pela nossa relação com o
trabalho.
No sistema capitalista, o valor não é dado pela utilidade das coisas,
mas pelo trabalho que foi necessário para as fazer. Quanto mais
trabalhamos para fazer uma coisa, mais isso acrescenta valor ao produto.
O lucro do capitalista provém de trabalharmos mais do que o necessário,
aquilo a que Marx chama mais-valia.
Por outro lado, o capitalismo fez do trabalho o carburante da vida
social. Nas sociedades anteriores, essa vida social baseava-se em
questões como a dominação directa do solo, as ideias de honra ou as
ideias religiosas. Na sociedade moderna somos todos definidos pelo
trabalho.
Mas nas últimas décadas o trabalho começou a esgotar-se. Há cada vez
menos trabalho por causa da evolução tecnológica. Podia ser uma boa
notícia - vamos trabalhar menos e ter tudo o necessário. Mas é o
contrário que acontece. As pessoas vão para o desemprego, não há uma
verdadeira redistribuição da actividade, e os que estão no desemprego
são também afastados do consumo.
O que contraria a lógica do sistema.
Sim, os que já não podem trabalhar já não têm dinheiro para consumir. É
uma espécie de auto-abolição do capitalismo. Numa fábrica faz-se uma
camisa em cinco minutos quando anteriormente um artesão precisava de uma
hora. Isto significa que há menos trabalho investido na camisa. Numa
sociedade racional diríamos "vamos fazer a mesma camisa que
anteriormente, mas trabalhando apenas cinco minutos". Mas é o contrário
que acontece: obriga-se o operário a trabalhar mais, a fazer mais
camisas, e depois é preciso vendê-las. Se se produz cada vez mais, é
para contrariar o facto de que em cada mercadoria é investido menos
trabalho e portanto a mais-valia é mais reduzida.
Mas nem sempre a substituição dos humanos por máquinas retira valor
ao produto final. Se eu for tomar um café, ele pode ser-me servido por
uma pessoa ou ser retirado de uma máquina e mesmo assim eu pagar o mesmo
por ele.
É aí que está a contradição - se uma empresa substituir um trabalhador
por uma máquina, ela vai ganhar mais porque a máquina tem um custo
menor. As pessoas pagam o café como antes, mas a empresa gasta menos em
salários. Mas se todas as empresas fizerem o mesmo, é o próprio sistema
que perde porque há menos utilização da força de trabalho. As empresas
são contra o interesse do sistema. Foi assim desde o princípio.
E, no entanto, as máquinas deixar-nos-iam mais tempo livre para nos
dedicar-se a outras actividades, eventualmente com maior utilidade.
Isso seria a situação ideal. Mas no sistema capitalista nem todas as
actividades são valorizadas, apenas as que podem reproduzir o capital
investido. O que fazemos para nós ou para os nossos amigos não é
considerado trabalho porque não entra na lógica do mercado. A actividade
útil para nós ou para os outros é muito diferente do que é considerado
trabalho no sistema capitalista. Podemos dizer de um casal que ele
trabalha numa fábrica, é trabalho, a mulher não trabalha, ocupa-se dos
filhos e do sogro que está doente. A definição do trabalho não tem nada a
ver com o conteúdo da actividade.
As actividades produtivas estão necessariamente ligadas à produção de mercadorias?
Não, mas têm que entrar num ciclo em que o capital se reproduz. Vejamos
uma fábrica: o operário faz um carro, o carro é vendido no mercado e
isso representa um lucro para o capitalista, e portanto é um trabalho
produtivo. É preciso também limpar a fábrica, mas os que o fazem não dão
nenhum lucro, é apenas uma despesa necessária, que não contribui em
nada para o lucro, pelo contrário.
Tendemos a ver o capitalismo como um sistema alimentado por alguns e imposto a outros. Mas não é assim que o vê.
O capitalismo tem uma lógica anónima, impessoal. Os capitalistas
executam apenas as leis de um sistema que os ultrapassa. Existe, claro,
responsabilidade individual, mas isso conta menos do que a lógica de
todo o sistema. Hoje há de novo uma forte tendência de pensar que o
problema é que há um grupo de pessoas que são demasiado ávidas, os
especuladores, banqueiros, etc., que exageram e põem em risco todo o
sistema baseado em trabalhadores honestos.
Há uma tendência para a personalização, que se encontra também muito em movimentos como os Indignados ou o
Occupy Wall Street. Isto pode ser perigoso porque é um pouco o que
aconteceu nos anos 30 com o sistema fascista, em que a cólera social se
voltou contra um grupo de pessoas, nesse caso, contra a finança judaica.
O verdadeiro problema é que não há uma distribuição das actividades em
função das necessidades sociais, como faria uma sociedade razoável, mas
há simplesmente esta necessidade de trabalhar seja no que for para
produzir coisas que não sabemos para que servem. Isso é algo que mesmo a
esquerda desvalorizara, porque se preocupou sempre muito com a questão
da justiça social, por perceber por que é que uns ganhavam mais do que
outros.
Se as pessoas tendem a personalizar, é porque é muito difícil lutar contra um sistema sem rosto.
É mais fácil ir para a rua protestar contra os banqueiros. Mas é fácil
dizer que nós somos apenas as vítimas, quando a verdade é que todos
fazemos parte deste sistema, desta lógica.
Parece difícil estar fora do sistema.
Sim, participamos todos, por exemplo, na lógica da concorrência, é algo
que nos invadiu completamente. Estamos sempre a tentar vender-nos, ser
mais fortes do que os outros, ter sucesso no mercado. Absorvemos
completamente a lógica capitalista, que não é natural, porque, no
passado, a concorrência tinha um papel muito menor na vida quotidiana.
Mas não considera positiva a ideia de que muita coisa depende das
nossas capacidades, e que não estamos condenados a um lugar determinado,
como num sistema de castas?
A modernidade apresentou-se como uma espécie de libertação em relação
ao sistema feudal, mas é uma liberdade aparente, porque é uma lógica
destruidora que leva as pessoas a fazerem tudo o que podem fazer, e a
considerar o mundo como uma espécie de material onde se podem realizar
as próprias aspirações. É verdade que o modernismo tem um dinamismo que
faltava às sociedades anteriores, mas a pouco e pouco este dinamismo
tornou-se uma espécie de individualismo que tomou conta das pessoas nos
países ocidentais.
Olhamos para nós próprios como empreendedores, como alguém que está
sempre em busca de oportunidades. É preciso fazer desporto para estar em
boa forma para trabalhar, ou frequentar meios em que se conheçam
pessoas que possam ajudar-nos a ter outro trabalho interessante.
Mas, pelo menos teoricamente, as coisas dependem mais da nossa vontade individual.
A ideologia oficial diz que cada um pode fazer da sua vida o que quer,
que não somos marcados pelo facto de termos nascido na Suécia ou em
África, mas na realidade não é assim. Não é como no Monopólio, em que
todos começam com a mesma quantia. Não há uma igualdade de
oportunidades.
Mas mesmo que ela existisse, era preciso perguntarmo-nos o que
queríamos fazer. Uma sociedade razoável organizaria um acordo colectivo
sobre o que é necessário fazer para vivermos bem, e depois pensaria como
o optimizar com o mínimo de esforço possível, com cada um a contribuir
com a sua parte para a vida colectiva e durante o resto do tempo a
dedicar-se a fazer o que quisesse.
Existe um espaço fora do sistema?
É evidente que sofremos cada vez mais com esta situação. As pessoas que
trabalham sofrem, fala-se cada vez mais de suicídios ligados ao
trabalho, há uma pressão enorme nas grandes empresas, sabe-se que se vai
despedir no próximo ano metade das pessoas, e então todos trabalham
como loucos para agradar a este deus que é a lógica da rentabilidade. E
os que não trabalham sofrem porque são socialmente desvalorizados.
Existe actualmente uma série de iniciativas ligadas ao decrescimento,
economias alternativas, grupos de trocas locais, ou de regresso ao
campo, trocas entre produtores biológicos. Tenho muito a criticar-lhes,
mas penso que, pelo menos, demonstram um interesse real de encontrar um
caminho que não seja apenas uma gestão alternativa da mesma sociedade
industrial baseada no dinheiro.
Durante muito tempo a esquerda limitou-se a propor uma distribuição
mais justa desses conteúdos. Hoje existe pelo menos a tentativa de
procurar ir para além disso. Mas há sempre outras forças sociais que,
pelo contrário, continuam a querer apanhar o último pedaço deste bolo
que é cada vez mais pequeno.
O capitalismo está moribundo?
Muitas vezes o ser humano não é rentável do ponto de vista do sistema, e
isso significa que vai também deixar de poder consumir. Na Europa
distribui-se ainda algum dinheiro pelos que já não são rentáveis, mas
também aí há uma pressão enorme para cortar, cortar. Há esta sensação de
que existem pessoas que são supérfluas do ponto de vista do sistema.
Para a Alemanha, a Grécia tornou-se um país supérfluo. E dentro dos
países há camadas da população às quais já não se sabe o que fazer.
Os Governos falam num regresso ao crescimento, todos querem exportar para os novos mercados emergentes.
Todos querem exportar, ninguém quer importar. Mas não é possível um
mundo em que todos exportem e ninguém importe. Aquilo a que chamamos o
milagre económico chinês baseia-se também nas exportações, sobretudo
para os EUA. Se os países pequenos entram na lógica liberal das
exportações, é terrível. Há países que em África produziam o suficiente
para se alimentarem - viviam modestamente, mas com o suficiente - e
quebraram tudo em nome das exportações, hoje só produzem bananas e se de
repente o mercado das bananas cair é toda a economia que cai.
É preciso libertarmo-nos desta ideia de produzir em primeiro lugar para um mercado mundial.
A globalização aproximou-nos de outras culturas. Se nos fechamos nas aldeias...
A mobilidade global é bastante unilateral. Nunca tivemos na Europa
fronteiras tão guardadas em relação a tudo o que é exterior. Há uma
mobilidade para os turistas, e uma mobilidade para os que têm que ir
procurar trabalho.
A alternativa não seria nem um regresso aos Estados-nações - isso
parece-me uma ideologia bastante perigosa. Uma sociedade pós-capitalista
deve ter uma base quotidiana nas realidades locais, comermos maçãs que
cresceram no pomar do vizinho e não na Nova Zelândia. Isso, claro, não
impede uma comunicação cultural e intelectual com pessoas que vivem
noutros locais. Há pessoas que optam por trabalhar menos e reduzir as
suas necessidades materiais, organizando-se com outras para terem uma
vida satisfatória que não passa necessariamente pela compra de produtos
ou serviços.
Mas disse que é crítico também desses movimentos. Porquê?
Porque pensam que é suficiente limitarem-se a essas medidas. Comprar os
nossos produtos no produtor biológico pode ser um primeiro passo.
Qual seria o segundo?
Um movimento social que ocupasse directamente os ateliers, as
fábricas. O capitalismo abandona muitas capacidades produtoras, porque
já não são rentáveis, mas estas poderiam ainda funcionar bem.
Está a falar de ocupações, de gestão comunitária, faz lembrar o 25 de Abril.
Há uma memória histórica que vale a pena recuperar. Evidentemente que não vamos começar do zero.
Mas o sistema integrou rapidamente essas experiências.
Não quer dizer que as coisas se passem da mesma maneira, porque hoje em
dia o sistema está muito mais enfraquecido. Hoje vivemos um momento
inverso ao dos anos 70 e 80. O sistema está em recuo. Os que pertencem
ao ciclo produção-consumo são cada vez menos, mesmo nos países mais
ricos. Há um número cada vez maior de pessoas que não encontram lugar
dentro do sistema. Se uma fábrica foi abandonada porque foi
deslocalizada, seria possível tomá-la e fazer nela alguma coisa de útil.
Uma mudança depende de uma espécie de contrário social prévio. É necessário um número elevado de pessoas.
Vejo aí outro risco - isso pode facilmente tornar-se uma espécie de
gestão da pobreza. A pobreza está a aumentar e o Estado poderia muito
bem dar uma parcela da gestão social a este género de economia
alternativa, dizendo: "Desenrasquem-se".
É ridículo, por exemplo, ver as pessoas que recuperam no final do
mercado os legumes que foram deitados fora. Isso torna-se uma
valorização da sobrevivência no dia-a-dia que é absurda se se continua
ao nível social global a desperdiçar imenso. A ideia da simplicidade
voluntária pode abrir um discurso de valorização da pobreza.
Para criar um sistema pós-capitalista usamos modelos anteriores ou é preciso inventar tudo?
O capitalismo cumpriu tão pouco as suas promessas que encontramos hoje
em alguns meios uma espécie de nostalgia de regresso ao passado. Mas é
certo que não vamos voltar atrás, o risco aí é o de arcaísmos violentos.
É claro que a solução só pode estar à nossa frente. Podemos ter uma
vida satisfatória com uma produção muito reduzida em relação ao que
temos hoje.
Vê o futuro ideal como um mundo em que as pessoas trabalham menos, o trabalho é mais bem distribuído...
... em que se definem as necessidades, aquilo que queremos fazer na
vida e como o podemos realizar com o menor esforço possível. É preciso
começar a pensar a partir dos resultados e não do trabalho. Muitas das
necessidades de hoje são compensações pelo trabalho. Uma vida dedicada
apenas ao trabalho é tão pouco satisfatória que é preciso depois ter
compensações, televisão, carros, viagens, jogos de computador.
Até que ponto é que essa mudança passa pela política?
Quando pensamos em política, pensamos na ideia de que o Estado deve
garantir uma melhor distribuição das coisas. Mas vemos que a política
não é solução, porque depende estruturalmente do dinheiro. Como há menos
dinheiro à disposição do Estado para ser distribuído, o Estado tem cada
vez menos poder. A esquerda, os alter-mundialistas, evocam sempre um
papel mais forte do Estado. Como se o capital fosse o pólo negativo e o
Estado o positivo. Mas se o Estado já não pode cobrar impostos, já não
tem nada para redistribuir.
Sem Estado, como é que garantimos a protecção aos mais
desfavorecidos? Não há um risco de que a lógica local seja a da caridade
da aldeia?
O Estado social ainda é muito jovem e começa já a ser desmantelado um
pouco por todo o lado. Existem muitos Estados onde não há praticamente
ajudas públicas. Enganamo-nos se pensamos que as preocupações sociais
são o coração do Estado.
Que organização social defende?
A auto-organização baseada nos bairros das cidades, unidades pequenas
que decidem da sua própria vida, e depois se organizam a um nível
federal com outras. Neste momento, o capitalismo é um castelo de cartas
que começa a perder as peças. Não é possível dizer quanto tempo demorará
a cair, mas os sinais são cada vez mais evidentes.
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